Brasil

Governo acorda para o perigo das bets; entenda

Avanço rápido do mercado de apostas online preocupa governo e instituições diante da falta de regulamentação e das consequências sociais de um segmento que movimenta até R$ 150 bilhões

Crédito: Diogo Zacarias

"O presidente Lula está inclinado a proibir o uso do Bolsa Família em apostas online", diz Fernando Haddad, ministro da Fazenda (Crédito: Diogo Zacarias)

Por Marcelo Moreira

Uma chaga social ao alcance de um clique. É dessa forma que o governo federal está tratando a proliferação de sites e aplicativos de apostas esportivas online – um mercado que se expandiu também para a área de modalidades análogas ou com proximidades ao famigerado jogo do bicho, ainda considerado contravenção penal no Brasil. Neste último caso, um felino feroz, o tigre, simboliza a febre das apostas e dos cassinos online, com o chamado “jogo do tigrinho”.

Os especialistas são unânimes em apontar o que todo apostador e jogador contumaz sabe, mas ainda assim raramente consegue escapar do vício: a banca nunca perde e quem joga raramente ganha – sendo que o valor costuma ser “reinvestido” em novas apostas, perdendo-se quase tudo em seguida. O problema é tão sério que idosos estão comprometendo suas aposentadorias, assim como beneficiários do Bolsa Família. O Banco Central estima que entre janeiro e agosto deste ano o brasileiro gastou de R$ 18 bilhões a

R$ 21 bilhões em apostas online. Economistas e analistas financeiros, entretanto, estimam um volume maior: com base em pesquisas de mercado, acreditam que o total movimentado em um ano pode chegar a R$ 150 bilhões.
O alerta foi ligado entre as entidades empresariais, como a Abras (Associação Brasileira de Supermercados), que recebeu relatos de proprietários de redes médias e pequenas apontando uma queda no movimento ao longo do ano. O resultado é atribuído ao redirecionamento do dinheiro para as apostas antes usado para a compra de alimentos. Marcio Milan, vice-presidente da Abras, diz que a situação é preocupante, com consequências graves. “Estamos acompanhando de uma forma estruturada para poder avaliar o quanto isso vai impactar no consumo.”

“Há muitos oportunistas que lucram com pessoas que eles julgam ‘otárias’.”
Cármen Lúcia, ministra do STF e presidente do TSE

(Mateus Bonomi)

Tentando demonstrar que não foi pego de surpresa, apesar de as reações demonstrarem o contrário, o governo federal já está agindo para tentar algum tipo de regulamentação por meio de portarias. Na mira estão, por exemplo, os beneficiários do Bolsa Família, segundo declarou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. “Vamos ouvir vários segmentos e órgãos do governo para tomar uma decisão. Mas o presidente Lula está inclinando em proibir que o dinheiro do Bolsa Família seja usado para apostas de qualquer tipo.”

Ele também comentou que o governo fará uma devassa nos sites que estão em funcionamento na atualidade, mencionando que pelo menos uns 600 poderão sair do ar. “Os sites que não pediram credenciamento vão deixar de operar e, durante 10 dias, os apostadores poderão resgatar os recursos depositados.” Na terça-feira,1, o governo divulgou a lista dos site e apostas que pediram autorização e estão autorizados a operar.

O assunto incomoda até mesmo o Judiciário, como a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia. Ela se manifestou dizendo ser perigoso o avanço das apostas esportivas. Avaliou que as bets abusam dos mais vulneráveis para lucrar e declarou ser pessoalmente contra a prática. “Há uma aposta clara de muitos na existência de otários que servirão de base para lucros indevidos.”

No Congresso, deputados e senadores aceleram iniciativas para tentar conter o avanço das bets e suas consequências, além de exigir maior celeridade do governo para regulamentar o setor. O Projeto de Lei 3703/24, por exemplo, proíbe que os beneficiários de programas sociais utilizem os recursos em apostas esportivas online. O texto prevê que quem descumprir a regra perderá o direito aos benefícios. A medida vale também para os cônjuges e dependentes. Segundo o autor do projeto, deputado Tião Medeiros (PP-PR), cerca de 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família apostaram R$ 3 bilhões via PIX. “Preocupa-nos o envolvimento de pessoas de baixa renda com esse tipo de apostas”, afirma o parlamentar.

O instituto de pesquisas Ipec divulgou, em setembro, um levantamento em que 28 milhões de brasileiros fizeram ao menos uma aposta online neste ano. Destes, 13 milhões, mais do que a população da cidade de São Paulo, apostaram pelo menos duas vezes por semana. Mais da metade dos apostadores admitiu que o dinheiro apostado faz falta no orçamento doméstico, sendo que parte deles também admitiu que perde mais do que ganha, e que costuma apostar mais do que possui. O governo ainda está avaliando o tamanho das consequências nefastas do avanço das bets.