Política

“Mulher que fez aborto não deve ser presa”, diz Barroso, presidente do STF

Crédito: Wenderson Araujo

“O pensamento único só existe nas ditaduras”, diz Luís Roberto Barroso (Crédito: Wenderson Araujo)

Por Germano Oliveira

O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), completou, em setembro, um ano à frente da direção do tribunal, período de inúmeros desgastes com o Congresso por conta da intervenção no caso das emendas PIX, mas nem por isso o magistrado entende que houve desarmonia entre os Poderes. A questão na qual ele ainda vê entraves para a pacificação nacional é quanto às investigações que a Polícia Federal, com a supervisão da Corte, desenvolvem sobre a tentativa de golpe no 8 de Janeiro. Para Barroso, as pessoas que estão sendo investigadas reagem à pacificação e ainda não estão prontas para sentar à mesa e dialogar. O ministro, contudo, arrisca um prazo para que todas essas investigações terminem, possivelmente entre o final do ano e o início de 2025. Com isso, então, o procurador-geral Paulo Gonet pode arquivar ou denunciar as pessoas envolvidas nos inquéritos, entre elas o ex-presidente Bolsonaro. Nesse um ano como presidente do STF, Barroso lançou, em agosto, um livro que está servindo de debate da sociedade sobre a nova tecnologia na Internet, com o título Inteligência Artificial, Plataformas Digitais e Democracia. No livro, o ministro classifica a inteligência artificial como a quarta revolução industrial. Entende, porém, que a IA deva ser regulamentada para evitar distorções, conforme explicou à ISTOÉ.

Neste mês de setembro, o sr. completou um ano à frente da presidência da STF. Qual é o balanço desse período?
Do ponto de vista institucional, acho que o país vive um momento de absoluta normalidade, com tranquilidade entre os Três Poderes. Pessoalmente, tenho boas relações com o presidente da Câmara, com o presidente do Senado e com o presidente da República. Os Poderes são independentes e harmônicos. Portanto, não quer dizer que pensem igual. Há divergências e há tensões. Mas o pensamento único só existe nas ditaduras.

Ainda há muito ódio no País, né?
As ações do 8 de janeiro e as investigações sobre a alegada tentativa de golpe de Estado dificultam essa pacificação, porque, evidentemente, quem está sendo investigado é reativo. Portanto, não está pronto para sentar na mesa. De modo que, diante da impossibilidade da pacificação completa até acabar esses julgamentos, estou tentando investir tempo e energia para imprimir marcas de longo prazo na qualidade do Judiciário.

O sr. realizou muitas ações no campo institucional?
Do ponto de vista do Judiciário, destacaria como realização da minha gestão a criação de um Exame Nacional de Magistratura, que vai gerar um padrão nacional para os juízes do país e acabar com os rumores de que coisas erradas aconteciam em alguns concursos. Além disso, tenho implementado, no âmbito do Judiciário, uma resolução do CNJ de paridade de gênero. Sempre que um homem tiver sido promovido por merecimento para um tribunal, a vaga seguinte tem que ser de uma mulher.

Um dos maiores embates na sua gestão, agora recente, é a suspensão do X no Brasil. Acha que o mais importante foi a lição dada de que bilionário não pode tudo no país?
A primeira observação que eu faria é que o ministro Alexandre tem sido um ator muito importante e corajoso, mas com o apoio do Tribunal. As pessoas têm a necessidade de uma personalização, e ele merece muitos elogios, mas a pauta é de um Tribunal que está unido no enfrentamento às ameaças à democracia. Na verdade, a questão é muito simples. Uma empresa, para operar no Brasil, tem que ter representação aqui e precisa cumprir a legislação e as ordens da justiça brasileira. O X cumpre as decisões da Índia, da China e da Arábia Saudita, mas no Brasil acham que não precisam cumprir.

“As investigações sobre a tentativa de golpe no 8 de janeiro de 2023 dificultam a pacificação nacional” (Crédito:Agência Brasil )

O sr. acha que a regulação das mídias sociais encerraria impasses como esses?
Sim. Como não há regulação das mídias sociais pela legislação, espero que venha uma legislação do Congresso, mas essa regulação acaba sendo feita pelo Judiciário. E o Judiciário não tem a possibilidade de dizer não julgo que não tem lei ou não julgo porque a causa é difícil. Portanto, a gente tem que julgar as questões que surgem. Mas, nesse caso da briga com o X, era um foragido da Justiça brasileira convocando a população para ir à porta da casa do delegado que conduziu o inquérito para hostilizá-lo, inclusive, dando ideias. Em nenhum país civilizado do mundo isso é considerado liberdade de expressão.

Sempre que tem uma questão polêmica, o Congresso empurra para o STF.
Não é incomum, pelo mundo afora, que questões mais divisivas da sociedade e do Parlamento não gerem consenso. E que elas acabam sobrando mesmo para o Judiciário. Então, questões como uniões homoafetivas, interrupção de gestação, pesquisas com células-tronco embrionárias, elas têm, em muitos países, ficado para o Judiciário. Mesmo nos Estados Unidos, a questão das plataformas digitais chegou à Suprema Corte de lá. Eles não quiseram decidir, deram uma decisão que, de certa forma, jogou o assunto para frente, para algum outro momento. Mas é só para dizer que, de fato, o Congresso não conseguiu produzir legislação, mas essa é uma dificuldade em todo o mundo. Porque a polarização muitas vezes faz com que as pessoas percam o senso comum. Porque não importa se você é de direita ou de esquerda, liberal ou conservador, não pode ter pedofilia na rede. Não pode ter terrorismo na rede. Não pode vender arma na rede. Não pode convocar a população para invadir prédio público na rede. Portanto, a polarização faz com que as pessoas não consigam concordar nem com aquilo que é, evidentemente, senso comum. E isso dificulta o processo de uma disciplina legal dessa matéria.

Principalmente em um Congresso conservador como o nosso…
Acho que na democracia há lugar para conservadores, para liberais e para progressistas. Só não tem lugar para a intolerância e para a violência.

Outras questões polêmicas, como o marco temporal, a descriminalização das drogas e a permissão de aborto até 22 semanas, sempre acabam em retrocessos no Congresso, obrigando o STF a tomar medidas mais progressistas. No caso do aborto, o sr. chegou a dizer que a sociedade ainda não estava preparada para discutir. Quando essa questão será colocada em debate?
Olha, drogas nós julgamos, e acho que com talvez uma das decisões mais importantes que nós tomamos para diminuir o hiperencarceramento de jovens pobres de periferia, que eram presos com pequenas quantidades de droga e iam engrossar as fileiras do crime organizado. Então, nós estabelecemos qual a quantidade que distingue porte para consumo pessoal de tráfego. E ainda acabamos com a moral dupla, que considerava a mesma quantidade na Zona Sul era porte, e na periferia era crime. Acho que essa foi uma decisão muito importante. O marco temporal eu também considero uma decisão muito importante e de justiça histórica, porque as comunidades indígenas que foram desapossadas com violência e conservaram historicamente a reivindicação sobre uma área, eu acho que elas devem ter a possibilidade da demarcação desde que se comprove que aquela era de fato uma área indígena, que picaretagem ninguém apoia. E, portanto, nós decidimos que onde a expulsão dos indígenas tivesse sido violenta ou sob ameaça e eles tivessem conservado uma reivindicação, que não se aplicava a nenhum tipo de marco temporal. O Congresso legislou em sentido diverso. É compreensível que o Congresso tenha uma posição diversa do Tribunal. O que nós precisamos saber é se essa posição diversa é compatível com a Constituição ou não. O ministro Gilmar Mendes, que é o relator, antes de simplesmente decidir se é constitucional ou não, convocou um processo de conciliação para ver se há a possibilidade de uma composição harmoniosa para esse problema. Não é fácil, mas ele está muito empenhado. E, na vida, tudo que você pode resolver por negociação amigável é melhor do que o que você resolve brigando. Quer dizer, é melhor um bom acordo do que uma boa briga. Mas, se não se chegar a um acordo, o Tribunal vai julgar de novo para dizer se é ou não constitucional a lei que voltou com o marco temporal.

“Até o início do ano que vem, o procurador Gonet deve decidir se denuncia ou não os envolvidos no inquérito das Fake News” (Crédito:Marcelo Camargo/Agência Brasil)

E no caso dos abortos?
Quanto ao aborto, a discussão no Brasil ainda não amadureceu. Ela é vítima de, às vezes, um pouco de incultura e, às vezes, um pouco de manipulação. A primeira observação que eu gostaria de fazer é que nenhum país desenvolvido e democrático do mundo criminaliza. Nem o Reino Unido, nem o Canadá, nem os mais católicos, nem Itália, nem Portugal, nem Espanha. Portanto, essa não é uma boa política pública. A questão deve ser colocada assim, como eu acho. O aborto é uma coisa ruim, e o papel do Estado é evitar que ele aconteça. E qualquer pessoa deve conservar o direito de ser contra, de não fazer e de pregar contra. Isso não se confunde, no entanto, com a crença de que a mulher que tenha precisado fazer deva ser presa. Portanto, ser contra o aborto não é sinônimo de achar que a mulher deva ser presa.

Em relação à questão do golpe do 8 de janeiro de 2023, já há uma previsão para acabar os inquéritos das milícias digitais, dos atos antidemocráticos, e do desvio das joias? Ninguém foi denunciado ainda. Chegou a hora de pôr o ponto final nesses inquéritos?
Conversei sobre esse assunto com o ministro Alexandre e a visão que temos é que já há um horizonte à vista e que esse material, em breve, estará com o Procurador-Geral da República, que aí vai decidir se é o caso, de se arquivar ou de denunciar os envolvidos. O procurador Gonet, que é o Procurador-Geral, entendeu, e me parece razoável, de só tomar essas decisões depois das eleições. De modo que eu não gostaria de me comprometer com uma janela de tempo, mas eu acho que entre o final do ano e o começo do ano que vem, o primeiro semestre do ano que vem, a gente possa ter esses inquéritos concluídos. Tem uma questão que está impactando as empresas de capital estrangeiro que atuam no Brasil, e que está causando grande dificuldade para que elas mantenham seus investimentos no País, que é sobre as terras que elas podem usar para operar seus negócios aqui. Muitas dessas empresas estão sendo obrigadas a dar andamento a disputas judiciais sem fim. Há o caso da CSN com a Ternin e o caso da J&F com a Paper, que implicam na questão da terra para as empresas estrangeiras.

O sr. acha que é uma questão importante de ser resolvida no Supremo?
Justamente porque tem discussão judicial é eu não devo me manifestar. Mas o Judiciário não é o lugar ideal para se discutir disputas de natureza empresarial e comercial. Se houver uma questão de legalidade, aí sim. Mas nós precisamos conter um pouco a epidemia de judicialização que existe no Brasil. Temos 83,8 milhões de processos em tramitação no Brasil. É um recorde mundial e não é só a política que muitas vezes transfere para o Judiciário a solução dos seus problemas. O mundo empresarial muitas vezes também empurra os problemas para cá. E acho que deviam resolver na mesa de negociação e não nos tribunais.