Conheça os superatletas, gente que supera (em muito) os limites humanos
Cada vez mais atletas, de diferentes categorias, se desafiam em provas que exigem fôlego quase sobrenatural, dando mostras de que o organismo pode ir, talvez, muito além do que se imagina
Por Maria Ligia Pagenotto
A vontade de vencer as próprias marcas, a sensação de liberdade e a alegria de estar fazendo algo que o torna mais focado são os motivos que movem Wilson de Sousa, 37 anos, a sair de casa todas as manhãs correndo, literalmente. Ele percorre 20 km em 1h30, com uma mochila nas costas, de Santo André, onde mora, até o trabalho na rua da Consolação, centro de São Paulo. Mas o que parece um grande feito é parte do treino diário de Sousa, e está longe de ser o episódio mais admirável de sua trajetória.
Em 2023, o atleta correu 100 km em 6h59min, na Argentina, levando o título de campeão da Copa Sul-Americana na modalidade. Foi seu melhor resultado, uma marca surpreendente. Formado em Educação Física e salva-vidas de profissão, sua especialidade são os 100 km em provas de 6, 12 e 24 horas. Sousa é um ultramaratonista e integra um grupo de pessoas que têm resistência para se manter por muitas horas em ritmo acelerado, seja correndo, pedalando ou nadando em águas abertas. Eles são chamados muitas vezes de “super-humanos” por conta da enorme capacidade física e mental que possuem para realizar feitos que parecem impossíveis para a maioria das pessoas.
Nessa galeria figuram, por exemplo, o ultraciclista austríaco Christoph Strasser, seis vezes recordista do tempo mais rápido no Race Across America – em 2021 ele percorreu 1 mil km em 24h; o alemão Thomaz Lurz, que nadou 88 km em 10h em 2015; e o lituano Aleksandr Sorokin, que, em 2022 correu quase 320 km em 24 horas.
Estão nessa lista também o veterano brasileiro Lula Holanda, de 70 anos, e o jovem Lucas Gasbarro, de 34 anos. Holanda começou a correr aos 50 anos e já participou de 103 ultramaratonas. Venceu os 154 km da Rio 24 horas e integrou a disputada prova de 90 km Comrades, na África do Sul. Já Gasbarro ostenta em seu currículo uma prova de 217 km (os participantes têm 60 horas para concluir o percurso) – ele fez em 45 horas.
“Esses atletas têm certas condições genéticas que conseguem desafiar os limites do corpo.”
Turíbio Leite de Barros, fisiologista do exercício
Entre as mulheres – brasileiras e mais velhas – vale destacar a ultramaratonista da seleção Helen Deluque, de 54 anos, e Iraci Santos Barreto, de 60 anos. Em 2019, Helen levou o título de melhor ultramaratonista da América do Sul e ficou em primeiro lugar na quarta edição da Ultramaratona Cross Country. Em 2018 esteve na Croácia representando o Brasil no Campeonato Mundial de Ultramaratonas. “Pela minha idade, tenho ótimos resultados”, diz Helen, que pretende correr enquanto tiver saúde. “Quando saio para correr, volto sempre com a cabeça mais tranquila”, conta a atleta, demonstrando a importância que o esporte tem em sua vida. Iraci, que se lançou para valer recentemente nas pistas, orgulha-se de ter ficado em segundo lugar numa prova de 6 horas realizada este ano no Paraná. “Foi a corrida da minha vida”, revela.
Há outros super-humanos que se sobressaem por conta de suas marcas no Brasil e no mundo – talvez ainda em número relativamente pequeno. Mas o que surpreende é que esse grupo parece crescer. No entanto, segundo o fisiologista do exercício e consultor Turíbio Leite de Barros, para ser um superatleta não basta querer: “é preciso poder”, sentencia.
Poder e genética
Os ultramaratonistas apresentam condições genéticas adequadas para que, em competições, consigam desafiar os limites do corpo, segundo o especialista. “Em geral, eles têm como diferencial um ótimo sistema cardiovascular, capaz de suportar tamanha sobrecarga.”
Claro que algumas adaptações ao esforço podem ser adquiridas com muito treino e orientação especializada. “Os hábitos de vida contam muito, mas esses indivíduos têm também um sistema respiratório e músculo-esquelético privilegiado”, afirma Turíbio. Relativamente, diz, são poucas pessoas que se sobressaem dessa forma – e se mantêm em evidência. “Anos atrás não existiam esses superatletas”, observa. Com o tempo, é fato, foi aumentado o interesse por praticar corridas de longas distâncias.
13 milhões
É o número de corredores hoje no Brasil, segundo a maior plataforma de venda de inscrições. O interesse é crescente, mas para se tornar um ultramaratonista é preciso mais do que querer
“A própria maratona (42km) era uma coisa para pouquíssimas pessoas”, afirma o especialista. Hoje, graças à evolução da ciência do treinamento, da nutrição esportiva e da fisioterapia, muita gente participa dessas provas com sucesso.
A atleta Mahira Braga, treinadora de ultramaratonistas, acredita que a barreira para se encarar esses desafios está em uma conjunção de fatores. “A rotina, que exige horas de dedicação, costuma ser um empecilho, assim como o custo de bancar essas atividades”, explica. Ela já fez algumas ultramaratonas em torno de 60 km e acompanha atletas que se dispõem a participar de provas que superam os 100 km. O desgaste físico e emocional nesses eventos, envolvendo as fases pré, durante e pós, é enorme e, como afirma a treinadora, nem todos conseguem enfrentar esse processo.
O ideal é começar de forma bem gradativa, com muito apoio de especialistas e exames médicos sempre em dia. Exercícios de força devem sempre fazer parte da rotina de quem corre, nada ou pedala, segundo Mahira. “Os atletas bem preparados conseguem enfrentar melhor não só a prova como também as lesões que podem vir ao final de um percurso muito longo.”
Esforço delirante
Sob grande esforço físico e privado de sono, os atletas de ultramaratonas, que muitas vezes cruzam desertos, geleiras e montanhas, assim como os que participam de triatlos e provas de ironman (3,8 km de natação, 180 de ciclismo e 42 de corrida), podem vir a sofrer também de delírios durante o percurso. “Chega um momento que o controle mental vai para o espaço”, diz Gasbarro. Mesmo admitindo ter facilidade para esportes de longa duração, ele sente o impacto das provas. “O corpo dói, os pés ficam em bolha, há um cansaço tremendo.” Para conseguir chegar ao fim, o domínio da mente é crucial para os superatletas. Iraci diz que, numa prova, o resultado depende 60% da força da mente. “É isso que vai garantir que você supere o estresse e siga sem desistir.”
Mesmo se defrontando com tantas questões que para as pessoas comuns soam como aterradoras, os superatletas são unânimes em dizer que o exercício físico intenso é algo extremamente prazeroso, do qual jamais pensam em abrir mão. “A corrida para mim significa empoderamento”, garante Iraci. Ela diz que é uma pessoa que precisa ter metas na vida. Por isso correr faz tanto sentido para ela. “Quero chegar aos 100 anos tendo feito 100 corridas com 50 troféus.”
Olhando para trás, Gasbarro reconhece que, para enfrentar os mais de 200 km, precisou abdicar de muita coisa. “Não é fácil, por isso estou repensando se continuo, mas posso voltar”, diz ainda indeciso. O que ele garante é que a corrida, ao liberar hormônios do bem-estar, como endorfina e serotonina, proporciona ao organismo um prazer intenso, com efeito semelhante ao de uma droga. “Você se sente flutuando, é viciante”, assume.
“A corrida me deu vida, me tirou do sedentarismo, da obesidade e da depressão”, revela Holanda. Fez tanto bem que ele montou um grupo em Recife – Acorja (Associação dos Corredores da Jaqueira) a fim de motivar outras pessoas a irem também para as pistas.
No caso de Helen, a corrida trouxe ganhos a ela e à família. “Veio como uma forma de libertação. Eu era superprotetora dos meus filhos, ficava em cima. Correndo descobri em mim outra mulher e vejo que tenho uma força que nem sempre consigo ter em outras situações.”
Nada é tão desafiador para Sousa quanto a corrida de longa distância. Ele também tem uma equipe de corrida – a Mente de Ultra. “As provas exigem um treino mental enorme, sinto um misto de emoções quando estou correndo e não tem como não sentir dor”, garante. Mas enfrentar isso é o que o move: “a resiliência que a ultramaratona me deu eu levo para a vida.”
O amor está nas pistas
Para namorar um atleta é preciso entender de pace, encarar lesões, dormir cedo e não beber. “Meu namorado tinha de cair do céu numa bicicleta para dar certo”, brinca Fernanda Pileggi, triatleta. Foi quase assim que ela emplacou a relação com o também atleta Lucas Niccioli. “É impensável namorar alguém com outro estilo de vida”, diz.
Bruna Matoso, triatleta, concorda. Esposa de Caio Gurgel, corredor, o casal se conheceu conversando sobre esporte em redes sociais. “Um estimula muito o outro”, conta. “Na sexta-feira, na hora do Jornal Nacional, já estou na cama”, diz Caio.
“Acordamos cedo parar treinar, temos as mesmas metas e muitos amigos do meio”, afirma Adriana Florian, namorada de Ulysses Pereira. “Nossos ex detestavam corrida, tanto que separamos.” Difícil dar match com quem passa longe das pistas.