Brasil

O escandaloso custo da paz no campo

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Gilmar Mendes mediou negociação que teve a concordância de Lula: índiginas só queriam de volta as terras (Crédito: Divulgação)

Por Vasconcelo Quadros

RESUMO

• Lula resolve conflito sangrento no Mato Grosso do Sul pagando caro por terra nua que era da União e abre perigoso precedente
• Ainda impunes pelas mortes, fazendeiros ligados a Bolsonaro recebem uma bolada de R$ 146 milhões e devolvem aos guaranis área homologada em 2005

Em junho de 2005 o ex-presidente do STF, Nelson Jobim, suspendeu o decreto do governo Lula 1, que homologava a terra indígena Nhanderu Maragnatu e reconhecia que a área de 9,3 mil hectares em Antônio João (MS), na fronteira com o Paraguai, pertencia à União, cuja posse permanente, por direito e ancestralidade, era da etnia guarani-kaiowá. Oito meses depois, Jobim deixou a Corte. E surgiu um conflito sangrento que resultaria no assassinato de sete líderes indígenas, executados por milicianos a serviço de um grupo de fazendeiros formado por 11 famílias.

Duas décadas depois, por pura omissão estatal, o caso se tornou um retrato do ruralismo radical e atrasado que gravita em torno do ex-presidente Jair Bolsonaro, numa região dominada pelo agro. Os crimes não foram esclarecidos e nem a Justiça analisou se havia boa fé na posse das terras, hoje degradadas, mas os fazendeiros venceram a guerra e levaram como butim uma verdadeira fortuna: R$ 146 milhões, dos quais o governador do Mato Grosso do Sul, Eduardo Riedel, autorizou o Estado pagar R$ 16 milhões, enquanto o restante, R$ 130 milhões, estão sendo desembolsados pelo Tesouro Nacional por ordem de Lula. A indenização contempla benfeitorias e, o mais caro, na ordem de R$ 102 milhões, a terra nua a preço de mercado, que era tudo o que o agro queria.

Face do bolsonarismo radical no campo, Nabhan Garcia fez gestões por fazendeiros como secretário de Assuntos Fundiários (Crédito:Divulgação)

O acordo, que abre apenas uma trégua na longa tragédia que remonta dois séculos e meio de violência contra os guaranis, foi mediado pelo ministro Gilmar Mendes e aceito pelo presidente. Mendes ressaltou que o desfecho do caso no meio de um cenário de confronto mostra que a negociação permitiu a pacificação. “Há espaço para todos. Demos uma solução para um caso que parecia insolúvel. Talvez seja este um aprendizado institucional para outras áreas conflituosas”.

Amigo de Riedel e apoiador de Bolsonaro, Dacio Queiroz Silva saiu no lucro: STF nem analisou legalidade da posse (Crédito:Divulgação)

A decisão é controversa, conforme frisou o advogado Rafael Modesto, que representou a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “É um precedente muito ruim. O governo se rendeu e abriu mão de uma análise imprescindível do caso. Os assassinatos tiram a boa-fé da posse pelos fazendeiros. Indenização não pode representar enriquecimento ilícito de grileiros”.

A Nhanderu Marangatu é apenas o epicentro da rebelião indígena pela retomada de terras sobre as quais estão sobrepostas em números precisos 9.211.687 hectares reivindicadas por 10.249 supostos proprietários rurais em 19 estados, uma pequena amostragem da superfície em que está assentada boa parte do badalado agronegócio brasileiro.

Assassinatos impunes

O acordo extinguiu todos os processos sobre posse e domínio movido há décadas sobre a Nhanderu Marangatu, mas não toca na solução de crimes, que começaram em 1983, com o assassinato do líder indígena Marçal de Souza, morto na antiga aldeia hoje conhecida como Vila Campestre. No local moram nove famílias de trabalhadores rurais, que serão indenizados com uma ínfima parte do montante, pouco mais de R$ 800 mil, e remanejados para fazendas confiscadas do narcotráfico sem levar nenhum centavo pela terra nua. A vila e as sedes de fazendas serão entregues a três mil indígenas. Já a família Pio Silva, que domina mais de 40% da área e é a parte central do conflito, embolsou R$ 13,3 milhões em benfeitorias e ainda engordará as contas com mais R$ 36 milhões pela terra.

• A cota mais generosa ficará com Dacio Queiroz Silva, prefeito por duas vezes de Antônio João e dono da Fazenda Primavera, onde tombou morto a tiros em 2015 outro líder indígena, Simeão Vilhalba.

• Seu irmão, Pio Queiroz Silva embolsará outro terço do que cabe à família em indenização pela Fazenda Barra, foco mais recente do conflito, onde foi morto no dia 18 de setembro o jovem Neri Ramos da Silva, de 22 anos, num episódio que mancha a biografia do governador Eduardo Riedel: para proteger a sede da fazenda, ele autorizou o deslocamento da tropa de choque da Polícia Militar. Foi um PM quem disparou o tiro fatal que acertou o rapaz na cabeça. A outra fazenda do clã, a Cedro, foi indenizada com valores semelhantes.

• A família Silva tem laços políticos fortes com o governo Riedel e Bolsonaro. Dacio foi nomeado no início de setembro, com salário de R$ 18,8 mil, assessor do Iagro (Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal do MS).

• Uma sobrinha dele, a advogada Luana Ruiz da Silva, que aparece como impetrante das ações da família na Justiça de Ponta Porá e no acordo celebrado por Gilmar Mendes, é assessora especial na Casa Civil de Riedel. Foi braço direito do ex-secretário nacional de Assuntos Fundiários de Bolsonaro, Luiz Antônio Nabhan Garcia, o poderoso fundador da UDR.

Luana representa o pai e a mãe, Pio e Rozeli Ruiz Silva — matriarca que tomou a frente nos confrontos —, e é também suplente de deputada federal pelo PL do Mato Grosso do Sul.

Como se vê, Lula bancou a farra do bolsonarismo raiz.