Cultura

‘Coringa: Delírio a Dois’, dança macabra em narrativa arrastada

Com repertório de clássicos do cancioneiro norte-americano, os astros Lady Gaga e Joaquin Phoenix transformam Coringa: Delírio a Dois em um musical sobre a loucura

Crédito: Warner Bros.-DC Entertainment/Collection ChristopheL/AFP

Lady Gaga e Joaquin Phoenix: filme tem boas interpretações, mas não iguala a força do original (Crédito: Warner Bros.-DC Entertainment/Collection ChristopheL/AFP)

Por Felipe Machado

Ao fazer um retrato sombrio e perturbador do psicopata Arthur Fleck, interpretado de forma magistral por Joaquin Phoenix, o diretor Todd Phillips revolucionou o universo dos filmes inspirados em personagens de histórias em quadrinhos. Coringa, de 2019, se distanciou das tradicionais propostas do gênero ao focar na complexidade psicológica de seu protagonista. Longe do maniqueísmo tradicional comum a esse tipo de produção, o longa conquistou a crítica e ganhou diversos prêmios. Ao mesmo tempo, gerou, pelo subtexto anárquico e repleto de violência, uma onda de críticas e polêmicas. E, ao mencionar Batman de forma velada, deixou no ar a dúvida: quando o Coringa finalmente apareceria em cena como o arqui-inimigo do homem-morcego? Após sofrer uma infância abusiva e virar um palhaço homicida, parecia que Fleck iria surgir na tela como tal, mas o primeiro filme não levou a sua narrativa até esse ponto.

Lady Gaga como Lee Quinzel: de admiradora a amante de Arthur Fleck (Crédito:Warner Bros. - DC Entertainment)

Cinco anos depois, Phillips retorna com a aguardada sequência, Coringa: Delírio a Dois. Embora muitos esperassem ver o bandido no auge de sua carreira criminosa e enfrentando o Batman, o diretor optou por continuar a explorar as nuances psicológicas de Arthur Fleck. Apesar de ser uma alternativa válida, a decisão deverá frustrar os fãs das histórias em quadrinhos.

Joaquin Phoenix: ação do filme original dá lugar à discussão sobre sanidade (Crédito:Warner Bros. - DC Entertainment)

Outra característica que subverte o estilo: Coringa 2 é um musical. Em vez de deixarem a narrativa mais dinâmica, no entanto, o excesso de números coreografados e cantados a tornam lenta. A trilha sonora é ótima, mas graças apenas a Lady Gaga.

Ela interpreta a namorada do Coringa, Lee Quinzel, uma versão diferente da vilã Harley Quinn. Além de não cantar bem, Joaquin Phoenix parece desconfortável com a missão. O repertório é clássico, formado por pérolas do chamado “great american songbook”. Será curioso ver como os adolescentes que vão lotar as salas de cinema reagirão a canções como “That’s Entertainment”, famosa na voz de Judy Garland, “Cheek to Cheek”, de Irving Berlin, ou “What the World Needs Now is Love”, de Burt Bacharach. A decisão de tornar o filme um musical pode ter sido criativa e corajosa, mas o resultado é um filme que, embora tenha momentos intrigantes, parece uma experiência arrastada e sem a força do original.

Todd Phillips: diretor correu riscos ao transformar a violenta história em um musical (Crédito:William Volcov)

Da cela ao tribunal

O enredo se passa em sua maior parte dentro do Asilo Arkham, onde Fleck está preso, e no tribunal, onde ele, agora famoso pelo assassinato ao vivo do apresentador Murray Franklin (Robert De Niro), enfrenta um julgamento televisionado que discute sua sanidade. A decisão limita as cenas da cidade que ficaram famosas no primeiro filme. O público vê pouco de Gotham City e muito de Fleck em sua cela, onde ele interage com um guarda sarcástico (interpretado por Brendan Gleeson) e com sua advogada, papel de Catherine Keener.

Lee Quinzel injeta um pouco de emoção ao filme, com Lady Gaga entregando uma performance carregada de malícia. Sua personagem, uma admiradora obcecada por Fleck, é o elemento mais vivo da trama, mas o roteiro não lhe dá espaço para evoluir de forma significativa. Ela permanece como uma peça secundária, sem atingir o potencial que Margot Robbie trouxe à personagem em outros filmes do universo DC.

Ao fazer a história girar em torno do julgamento dos crimes cometidos por Arthur Fleck, Phillips traz a discussão sobre sua sanidade para o centro do roteiro. Sua advogada argumenta que ele sofre de dupla personalidade e que o Coringa é uma entidade separada, o que o isentaria da responsabilidade. O promotor insiste que ele é plenamente consciente de suas ações e deve ser condenado à pena de morte. Enquanto no primeiro filme a subversão do Coringa gerava discussões acaloradas na imprensa e nas redes sociais, desta vez a questão da responsabilidade sobre os próprios atos não deve gerar tanto engajamento.

Apesar de toda a construção em torno da identidade de Arthur como Coringa, o filme falha em nos fazer sentir que ele realmente abraça seu destino como o grande vilão do universo DC. Ele canta, dança e veste seu famoso terno e a maquiagem em alguns momentos, mas não há uma sensação real de perigo ou transformação. A aura de violência e caos que permeava o primeiro filme se dissipa, deixando uma narrativa mais apática. Coringa: Delírio a Dois é uma aposta ambiciosa, mas que, ao final, não alcança o impacto visceral do original. Talvez a maior ironia de todas seja que, ao tentar subverter as expectativas do público, Todd Phillips tenha feito exatamente o contrário: deixou o Coringa preso em um ciclo de autoindulgência, sem nunca realmente se libertar para ser o vilão que todos esperavam ver.