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Cronista inigualável, João do Rio ganha relançamento e homenagem na FLIP

Autor homenageado pela Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP, o jornalista João do Rio é redescoberto como um pioneiro da crônica que se tornou padrão na imprensa brasileira

Crédito:  arquivo IMS/

João do Rio: escritor mais jovem a ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, aos 29 anos (Crédito: arquivo IMS/)

Por Felipe Machado

O que fez de João do Rio um jornalista singular foi sua habilidade de captar os detalhes da vida urbana com um olhar que unia a precisão do repórter à sensibilidade do escritor. É possível dizer que ele foi o pioneiro de um estilo de crônica que tornou-se padrão na maioria dos veículos de imprensa brasileiros. Foi também, para muitos, o primeiro grande flâneur do Brasil — termo cunhado pelo poeta francês Charles Baudelaire, que define aquele que percorre as ruas absorvendo a essência da cidade. Um caminhante “sem destino, mas com inteligência”. Flanar, para ele, não era apenas uma forma de observação, mas um método de trabalho.

Crônica, Folhetim, Teatro: Com textos produzidos entre 1899 e 1919, caixa da Carambaia é um dos relançamentos da editora em homenagem ao autor

João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, foi mais do que um cronista. Ele criou um estilo de texto híbrido que navegava entre a ficção e a realidade. Em uma época de transformações tecnológicas e sociais, destacou-se por captar a essência dessa nova velocidade, tanto na vida cotidiana quanto na própria forma de narrar. Enquanto caminhava pelas ruas, o Rio de Janeiro mudava rapidamente. A reforma urbana promovida pelo prefeito Pereira Passos no início do século 20, com seu projeto de “bota-abaixo”, demoliu partes antigas da cidade, criou grandes avenidas e trouxe uma nova estética urbana.

Essa transformação, embora modernizadora, também aprofundou as desigualdades. João do Rio foi um dos poucos autores que souberam captar essa contradição: o progresso vinha acompanhado de perdas, e ele nunca deixou de observar os resquícios do passado desaparecendo diante da especulação imobiliária.

Rio de Janeiro no início do século 20: escritor destacou-se por captar a essência das invenções que surgiam à época, como o carro, o cinema e o fonógrafo (Crédito:Divulgação)

Essa habilidade de navegar entre tempos distintos é ressaltada por Ana Lima, curadora da FLIP 2024, que homenageia o autor em sua 22ª edição. Para ela, João do Rio projetava um futuro otimista, mas estava atento ao passado que desaparecia. Sua obra reflete tanto a fascinação pelas inovações da época — como o carro, o cinema e o fonógrafo — quanto a melancolia de ver a cidade mudar, muitas vezes, de maneira desordenada.

Alma encantadora

Em suas crônicas, especialmente no livro A Alma Encantadora das Ruas, ele mostrou ao leitor um Rio de Janeiro multifacetado: das damas elegantes da Rua do Ouvidor aos frequentadores dos bares nos morros; dos cafés e cabarés aos subúrbios abandonados. O jornalista explorava o que chamava de “as religiões do Rio” e dava voz àqueles que a alta sociedade ignorava.

Foi o primeiro a reportar sobre a vida das mães de santo, como a famosa Tia Ciata, cujo terreiro na Praça Onze é considerado o berço do samba. Suas crônicas não eram apenas registros históricos, mas também uma espécie de retrato da vida carioca, revelando o impacto da modernidade sobre a estrutura social.

Seus textos não eram apenas registros históricos, mas retratos da vida no Rio de Janeiro sob o impacto da recém-chegada modernidade

A trajetória de João do Rio foi marcada por profundas contradições.
Nascido em 1881, filho de pai branco e mãe negra, ele transitava entre os salões da alta sociedade e as vielas da cidade.
Ao longo de sua curta, mas prolífica vida, escreveu mais de 2.500 textos, além de 25 livros que capturaram a transformação vertiginosa da capital carioca — à época, principal metrópole do País.
Quando veio a falecer, em 23 de junho de 1921, sua morte gerou uma comoção pública incomum. O corpo foi velado no jornal A Pátria, que ele fundara, e levado ao cemitério São João Batista em um cortejo seguido por mais de cem mil pessoas, incluindo membros da elite intelectual e figuras marginalizadas.
A multidão que o acompanhou mostrou que João do Rio tinha a capacidade de dialogar com diferentes camadas da sociedade, desde as altas esferas até as comunidades que começavam a surgir, todas retratadas de forma digna em suas crônicas.

Legado inabalável

Aos 39 anos, ele partiu de forma inesperada, vítima de um derrame fulminante, deixando um legado que dura até os dias de hoje. Mesmo com suas polêmicas e detratores — como Lima Barreto, Humberto de Campos e outros que o atacavam por racismo e homofobia —, o legado de João do Rio permaneceu inabalável.

A homenagem que a FLIP lhe faz é um reconhecimento tardio, mas necessário, à figura que desafiou convenções e expandiu os limites do jornalismo e da literatura. Sua influência segue viva um século depois de sua morte. E, assim como o flâneur de Baudelaire, João do Rio continua vagando pelas páginas da história, dando voz a uma época e eternizando o cotidiano de uma cidade que, como ele, nunca parou de se transformar.