O ensino lucrativo dos fardados
Por Marcelo Moreira
RESUMO
• Governo do Estado de São Paulo pretende implantar modelo cívico-militar em ao menos cem escolas da rede
• Sistema de ensino tem nítido viés ideológico e está suspenso pela Justiça
• Iniciativa envolve contratos que podem render milhões de reais a profissionais, empresas e associações de consultoria
Ideologizar o sistema educativo das escolas para impedir a “entrada de outras ideologias”, em um processo que pode envolver pagamento de valores milionários em consultorias e contratação de muitos professores e consultores. Essa é uma das principais críticas ao projeto aprovado pela Assembleia Legislativa de São Paulo, de autoria do governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos), instituindo o modelo de ensino cívico-militar nas escolas públicas que quiserem aderir. Uma preocupação adicional, além do evidente caráter ideológico de viés conservador, é com a transparência dos processos e contratação de consultorias e professores. De acordo com apoiadores do projeto, há uma predileção por oficiais da Polícia Militar reformados mesmo que não tenham formação na área de educação.
A tendência ideológica, assim como dúvidas em relação à transparência em muitos pontos, levou a questão para a Justiça. O Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) e o dos Professores e Trabalhadores Estaduais da Educação ingressaram com ação pedindo suspensão da vigência do projeto. O tribunal determinou a suspensão da implantação.
O desembargador Figueiredo Gonçalves, do TJ-SP, considerou que o programa apresenta sérias controvérsias sobre a constitucionalidade. A suspensão será mantida até que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgue a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7662, proposta pelo PSOL.
“Tensão nas escolas”
Para o presidente da Apeoesp, professor Fábio Limeira, “vivemos um momento de tensão nas escolas, com uma plataformização autoritária, que torna o trabalho exaustivo. Apenas diretores opinaram e agora, em muitas delas, há tentativa de impor a aceitação e calar a comunidade escolar”.
Em nota, o governo do estado de São Paulo informou que aguarda a análise do STF para prosseguir com a implantação. “As escolas que adotarem o modelo cívico-militar seguirão o currículo paulista, organizado pela Secretaria da Educação. A contratação e a formação de professores também não mudam”.
Por enquanto, a Justiça ainda não questionou a contratação de consultores para a implantação. Os programas existentes foram incrementados de acordo com diretrizes passadas na gestão de Jair Bolsonaro. Prefeitos contratam serviços de associações para “organizar e assessorar a criação/transformação de escolas”, muitas vezes sem licitação, recorrendo ao recurso da “notória especialização”.
● Lins, no interior de São Paulo, administrada pelo delegado de polícia João Pandolfi (PSD), aderiu ao programa e contratou os serviços da Associação Brasileira da Educação Cívico-Militar (Abemil), desembolsando R$ 598 mil e prorrogando os contratos.
● A instituição é liderada pelo policial reformado e suplente de deputado federal pelo Distrito Federal Davi Lima Souza, do PL de Bolsonaro.
● Capitão Davi, como é conhecido, é influente. Viaja por todo o país prestando consultorias.
● A entidade informa que trabalha com 19 prefeituras.
● Especialistas no mercado de educação estimam que os contratos da Abemil renderam, por baixo, R$ 11 milhões.
Entre os serviços prestados, a associação oferece às escolas e prefeituras uma cartilha que recomenda a utilização de uniformes e comportamentos de cunho militar. Sugere padrões rígidos nas questões de aparência dos alunos, como corte de cabelo.
Aos meninos, diz que devem ter o cabelo cortado para “manter nítidos os contornos junto às orelhas e o pescoço, de forma a facilitar a utilização da cobertura e harmonizar a apresentação pessoal. O aluno deve se apresentar bem barbeado, com cabelos e sobrancelhas na tonalidade natural e sem adereços, quando uniformizados”.
ISTOÉ tentou contato com a Abemil, mas não teve resposta. Em seu site, ela informa que a atuação é “independente e apartidária”, constituída com o “propósito inequívoco de implementar e manter o modelo de educação cívico-militar”. A entidade diz prestar serviços em 19 escolas em todo o País e contar com “um corpo de funcionários civis e militares da reserva criteriosamente selecionados”.
O cientista político Daniel Cara, pesquisador e professor da Faculdade de Educação da USP, diz que o modelo não privilegia a cidadania pois a formação militar é incompatível com os preceitos democráticos de educação. “A única escola ideologizada no Brasil é a cívico-militar. Não dá para tratar estudante ou cidadão como soldado”, avalia. “É inaceitável que um governador ou prefeito acredite que um oficial militar seja melhor educador do que um professor qualificado que estudou para ensinar. É um modelo equivocado.” Não é preciso aula de bom educador para concordar com isso.