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Sustentabilidade: Lula manda recado na ONU, mas governo não faz dever de casa

Crédito: Michael M. Santiago

“O planeta está farto de metas e acordos não cumpridos e do auxílio aos países pobres que nunca chega”, disse Lula na Assembleia Geral (Crédito: Michael M. Santiago)

Por Vasconcelo Quadros

RESUMO

• Lula afirma na ONU que evidências de mudanças climáticas derrubam negacionismo e volta a cobrar dinheiro dos países ricos para o meio ambiente
• Mas, com biomas ardendo e fuligem nas cidades, discurso seria mais convincente se o Brasil tivesse feito sua parte

O Brasil abriu a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) alertando a humanidade sobre o momento de “crescentes angústias, frustrações, tensões e medo” impostos pelo desafio mundial dos extremos climáticos. Diante de chefes de Estado de 193 países, que deveriam absorver as aspirações por mudanças, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva frisou que as evidências do aquecimento global derrubaram as falsas teorias de quem nega a ciência, colocando 2024 como o ano mais quente da história moderna, castigando o Brasil de Norte a Sul e não poupando nenhum lugar do planeta da intensidade letal dos desastres: “Furacões no Caribe, tufões na Ásia, secas e inundações na África e chuvas torrenciais na Europa deixam um rastro de mortes e destruição. No Sul do Brasil, tivemos a maior enchente desde 1941. A Amazônia está atravessando a pior estiagem em 45 anos. Incêndios florestais se alastraram pelo país e já devoraram cinco milhões de hectares apenas em agosto.” É um recado claro aos governos de países ricos por mudanças enquanto ainda há tempo de interromper a severa poluição da atmosfera.

Bill Gates entregou prêmio a Lula por projetos de combate à fome (Crédito:Mike Lawrence)

Os números apresentados por Lula no evento demonstram, no entanto, que os grandes investimentos das superpotências estão concentrados no aumento da capacidade bélica diante de nações que caminham para conflitos generalizados — seja pela disputa entre Rússia e Ucrânia ou pelo Oriente Médio, com Israel atacando palestinos em Gaza e na Líbia — ignorando que, nas guerras ou na furiosa reação da natureza, as populações mais frágeis são as que mais sofrem.

“Os gastos globais crescem por anos consecutivos e atingiram 2,4 trilhões de dólares. Mais de 90 bilhões de dólares foram mobilizados com arsenais nucleares. Esses recursos poderiam ter sido utilizados para combater a fome e enfrentar a mudança do clima”, lamentou Lula, que recebeu, na segunda-feira (23), das mãos do fundador da Microsoft, Bill Gates, o prêmio GoalKeepers, da Fundação Bill e Melinda Gates, por projetos de combate à fome implementados em seus governos, entre eles o Bolsa Família.

Falta de sensibilidade

O presidente acredita que, apesar da falta de sensibilidade do mundo rico, e como é impossível “desplanetizar” a vida comum, todos os povos do mundo estão condenados à interdependência da mudança climática. O tempo para agir está sendo consumido pela omissão. “O planeta já não espera para cobrar da próxima geração e está farto de acordos climáticos não cumpridos. Está cansado das metas de redução da emissão de carbono negligenciadas e do auxílio financeiro aos países pobres que não chega.”

“O meu governo não terceiriza responsabilidades nem abdica da sua soberania. Já fizemos muito, mas sabemos que é preciso fazer mais. Além de enfrentar o desafio da crise climática, lutamos contra quem lucra com a degradação ambiental.”
Lula, presidente

O presidente criticou o esvaziamento dos Conselhos da ONU, a omissão da entidade e cobrou uma reforma que altere a governança global. Lula ressaltou que, se por um lado o desenvolvimento sustentável exigiu maior esforço diplomático nos últimos anos, por outro caminha para o “nosso maior fracasso coletivo” ao negligenciar as metas estabelecidas para 2030.
Dos 169 objetivos definidos em 2015, entre os quais estão ações para acabar com a fome e proteger o planeta, apenas 17 serão cumpridos dentro do prazo pela ONU.
A insegurança alimentar, ao contrário do prometido, aumentou em mais de 150 milhões de pessoas e chega atualmente a 773 milhões ao redor do mundo.

O discurso do presidente é baseado em dados reais e as críticas são necessárias. Mas certamente convenceriam mais se o Brasil, que sobreviveu ao trágico governo Jair Bolsonaro, tivesse feito o dever de casa.

Não fez, e, por isso, amarga o peso da contradição ao apontar o dedo para o mundo enquanto os incêndios florestais, principalmente nos biomas do Pantanal e do Cerrado, ardem, numa onda de destruição ambiental e de extensas cortinas de fumaça que encobrem cidades e enchem hospitais de pessoas com problemas respiratórios.

Lula fez apenas uma breve referência ao problema: “O meu governo não terceiriza responsabilidades nem abdica da sua soberania.” A ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Marina Silva, reconheceu que há erros no controle das queimadas, para o qual o governo federal não se preparou e nem exerceu adequadamente seu papel de autoridade federativa para induzir estados e municípios a criarem redes de proteção.

E sentenciou que, para cobrar do Brasil, os países ricos precisam liberar os recursos prometidos no Acordo de Paris, já que o País conseguiu reduzir os desmatamentos na Amazônia em 50%.

Os eventos climáticos severos no País, muitos combatidos sem eficiência, tiram força dos apelos de Lula e da ministra Marina Silva (Crédito:Mayangdi Inzaulgarat)

Os problemas mais graves de gestão estão no uso de recursos públicos que deveriam financiar projetos agroecológicos da agricultura familiar na Amazônia, mas são desviados para grandes empreendimentos de pecuária e soja.
Um documento elaborado por fontes do PT, ao qual ISTOÉ teve acesso, demonstra que, na safra 2023/2024, nenhum centavo dos R$ 13 bilhões previstos no Fundo Constitucional do Desenvolvimento do Norte (FNO), gerido pelo Banco da Amazônia (BASA), foi investido em projetos sustentáveis, contrariando frontalmente o princípio de constituição do fundo.
Os dados do Banco Central apontam que os contratos de financiamento para a agricultura familiar (Pronaf) sofreram uma queda de 65% na comparação entre as safras de 2013/2014 e 2023/2024, enquanto no mesmo período os grandes empreendimentos voltados para a pecuária subiram 279%, com destinação de 70,6% para pecuária e soja.
Para a safra deste ano, os pequenos e micro agricultores receberam um total de R$ 765,5 milhões, 41% a menos dos R$ 1,3 bilhão previstos.
No mesmo período, em 73 operações para atender os grandes, o BASA liberou R$ 1,6 bilhão, mais de duas vezes o valor solicitado em 20 mil contratos da agricultura familiar.
Um gráfico demonstra que, para a produção de produtos de subsistência que fazem parte da cadeia agroecológica (como o açaí), o BASA liberou apenas 9% dos recursos, dos quais nenhum centavo foi destinado a lavouras de feijão.
Ao exigir uma renda superior ao razoável para permitir acesso ao crédito, o BASA excluiu 96% dos estabelecimentos de micro e pequenos agricultores na região.

“O que nós estamos descobrindo agora é que [o plano proposto] não foi suficiente. E ter essa clareza e essa responsabilidade de não querer mascarar a realidade ou minimizar a realidade faz parte de uma postura republicana diante da sociedade.”
Marina Silva, ministra do Meio Ambiente

(Vanessa Carvalho)

Desconforto

Os desvios de finalidade do BASA foram informados em um relatório encaminhado ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que orientou a Secretaria Executiva da pasta a verificar as denúncias.

O Tesouro Nacional liberou, no ano passado, R$ 4,5 bilhões ao banco estatal, cujo controle na região da Amazônia está nas mãos de um aliado do governo, o senador Eduardo Braga (MDB-AM).

“Causa desconforto o fato de, nesse período do terceiro governo Lula, o BASA manter o descolamento da execução do FNO dos propósitos originários do fundo”, diz o relatório. O texto também alerta para a possibilidade de a COP do ano que vem, que será sediada em Belém, se transformar em um fiasco. “Seria um desastre político chegarmos na COP 30 sem essas mudanças de profundidade no principal instrumento de financiamento da economia rural da Amazônia.”

Como se vê, com a casa desarrumada, fica difícil cobrar dos vizinhos ricos.