Oriente Médio: escalada da guerra assusta analistas; confira
Com Israel desviando o foco de seus bombardeios para o Líbano, o conflito regional com os terroristas do Hezbollah pode levar a uma catástrofe de alcance ainda maior, envolvendo EUA e Irã
Por Denise Mirás
Um confronto que se dá pelos ares e mata civis, basicamente, já está instalado entre Israel e o Hezbollah, como uma “nova fase” estendida do conflito em Gaza. E ameaça se alastrar pela região: enquanto líderes mundiais se encontravam nos EUA e discursavam na ONU no início da semana — a dez mil quilômetros da zona de guerra —, mísseis a serviço do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu matavam centenas de libaneses em questão de horas, deixando ainda milhares de feridos. Em resposta, o Hezbollah, grupo terrorista baseado no Líbano, atingia instalações militares em Israel, avançando pontualmente do norte para o centro daquele país. Se a troca de tiros na fronteira vinha sendo quase diária desde que os terroristas do Hamas invadiram o território israelense em outubro do ano passado, deixando pelo menos 1.200 mortos e levando 250 reféns, agora o conflito se intensificou. Calcula-se que 250 mil palestinos deixaram suas casas e pelos menos 25 mil israelenses também estão se deslocando. Vários países já se movimentam para retirar seus cidadãos do Líbano, como é o caso do Brasil — que tem pelo menos 20 mil residindo por lá.
Sem cumprir a promessa de resgatar — vivos — os reféns em poder do Hamas (mesmo depois de promover o massacre de mais de 40 mil palestinos em Gaza), Netanyahu desvia a atenção dos israelenses abrindo outra frente de batalha, agora no Líbano e focada em ciberataques e combates aéreos.
Declara que vai aprofundar o conflito com o Hezbollah e assim mantém seu ciclo bélico para não ser derrubado do cargo e acabar na cadeia por corrupção. Sem rédeas, o primeiro-ministro israelense não se detém por desagravos diplomáticos no palanque da ONU.
Como “posto avançado dos EUA no Oriente Médio”, Israel conta com seu apoio financeiro e militar, como observa o professor Vladimir Feijó, das Faculdades Arnaldo Janssen, de Belo Horizonte. “Netanyahu tem certeza da impunidade”, diz, citando investidores como Miriam Adelson, dona de cassinos em Macau e nos EUA, que apoia Donald Trump e diz ter colocado US$ 100 milhões para sua eleição em 5 de novembro — ao que consta, em troca da anexação total da Cisjordânia.
Na disputa anterior, continua o professor, Trump teria aceito milhões de dólares da herdeira do grupo Sheldon Adelson na condição de retribuir com a mudança da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém — o que foi feito.
Se Kamala Harris, ainda “uma folha em branco”, for a eleita, a tendência é seguir o discurso de Joe Biden, observa Feijó, lembrando das tropas que o governo americano decidiu enviar à região nesta semana, como “reforço”. Enquanto isso, em Israel os grupos de extrema-direita, ainda mais radicais, estão enxergando uma oportunidade para “ocupar não só Gaza mas também a Cisjordânia, com violência”.
O conceito do “escalonar para desescalonar”, entendido como agressão controlada e usado até como arma psicológica, nem parece mais fazer parte dos planos de Netanyahu. Para o professor Feijó, a situação parece “sem perspectiva de desescalonar”. As Forças de Defesa de Israel (IDF) relataram bombardeios em 1.300 alvos do Hezbollah no Líbano, com mísseis de cruzeiro, foguetes e drones apontados para casas de civis, enquanto se preparavam para um “próximo estágio de operação” — que seria a entrada por terra.
Israel tem um sistema de defesa antiaéreo conhecido como ‘domo de ferro’, para interceptar e destruir mísseis inimigos do Hezbollah
Pior dia do Líbano
Depois que pagers e walkie-talkies em mãos do Hezbollah explodiram, deixando 37 mortos e mais de 3.500 feridos entre os dias 17 e 18, ficou clara a infiltração de Israel nas redes de telecomunicação do Líbano — que ainda alertou seus cidadãos a não abrir panfletos lançados no Vale de Bekaa, centro do país, com códigos de barras montados para roubar dados pessoais.
A segunda-feira, 23, foi “o pior dia no Líbano em 18 anos”, nas palavras de Ettie Higgins, representante naquele país do UNICEF (braço da ONU em defesa das crianças). Ataques israelenses no sul e no leste do país vizinho mataram perto de 600 pessoas (e pelo menos 50 meninos e meninas) , com o bombardeio mais devastador desde 2006 — quando Israel e Hezbollah se enfrentaram abertamente.
Os libaneses não apenas receberam mensagens por telefone e alto-falante para deixarem suas casas, como tiveram de ouvir do próprio Netanyahu para “saírem do caminho”, o que provocou pânico geral e estradas congestionadas por milhares de pessoas em fuga. O presidente iraniano Masoud Pezeshkian acusou Israel de tentar atraí-lo para um conflito de consequências irreversíveis. “Queremos viver em paz. Não queremos guerra. É Israel que busca criar esse conflito geral”.
Com o Líbano à beira do abismo, o que se vê é a aproximação de uma “guerra completa”, na definição de Josep Borrell, alto representante da União Europeia para Negócios Estrangeiros e Política de Segurança. Os temores são de que EUA, aliado de Israel, e Irã (que apoia Hamas, Hezbollah, houthis do Iêmen e ainda grupos armados do Iraque) se encarem em um confronto mais amplo e mesmo com armamentos nucleares.
O cientista político Leandro Consentino, professor do Insper, lembra que conflitos locais também estão em uma agenda internacional e há questões maiores a serem analisadas, como a postura inédita de vizinhos árabes como Jordânia e Arábia Saudita mostrando apoio a Israel, “o que pode mexer no tabuleiro daquela região”.
Por seu lado, “Netanyahu busca ampliar o conflito para manter a relevância de seu governo e assim Israel assume essa postura de enfrentamento de instituições, na linha de Donald Trump e Vladimir Putin, que esgarçam e usam instituições a seu bel prazer, fora da lógica do sistema internacional”. Para o primeiro-ministro israelense, não ouvir as propostas de negociação “é até positivo, para enfraquecer Joe Biden”, observa Consentino. E ameaças de sanções por parte dos EUA “não são críveis, porque os americanos jamais apoiariam o outro lado”.
Inação da ONU
E enquanto os bombardeiros se acirravam e em Nova York o presidente iraniano Masoud Pezenkian acusava a ONU de “inação sem sentido”, Richard Gowan, do think tank Crisis Group, dizia que a instituição corre risco de se tornar “irrelevante globalmente se não ajudar a promover paz”.
De acordo com o professor Feijó, especialista em Direito Internacional, o Conselho de Segurança da ONU poderia ampliar o mandato da UNIFIL (Força Interina das Nações Unidas no Líbano), criada em 1978 e que tem autorização de uso de força, para assegurar o cessar-fogo entre Israel e o Hezbollah. “Depois da decisão aprovada, ainda seria preciso estabelecer um plano de ação, definir a quantidade de tropas necessárias e pedir a países o envio de soldados”, explica, observando que esse processo demoraria cerca de seis meses. “Com isso, se tornaria ilegal qualquer apoio militar que possibilitasse ataques, com embargo militar a Israel e Líbano.”
Mas, com a ONU refém de cinco países (China, EUA, França, Rússia e Reino Unido),com poder de veto a qualquer proposta apresentada, parece impossível passar uma decisão que vise ao cessar-fogo, principalmente hoje, com a indefinição da política interna dos EUA. “Enquanto não houver espaço para a diplomacia, o caminho é mesmo a guerra. Uma triste perspectiva de futuro.”
AS AÇÕES “CINEMATOGRÁFICAS” DO MOSSAD
Realizar missões com ares de filme de espionagem é a marca do Instituto de Inteligência e Operações Especiais de Israel
O Instituto de Inteligência Operações Especiais de Israel, o Mossad, criado em 1949, é, ao lado da americana CIA, o mais preparado serviço desse tipo no mundo. Com uma peculiaridade: a promoção de ações “de cinema”, não raro deixando como rastros inocentes mortos e feridos. Livros e filmes como Munique (2005) de Steven Spielberg, sobre os assassinatos de atletas judeus por palestinos do Setembro Negro nos Jogos de 1972, na cidade alemã, retratam essas operações.
Numa delas, em 1960, um time do Mossad desembarcou em Buenos Aires em meio a uma comitiva de Israel para comemorações dos 150 anos da independência argentina. Nem o chefe da delegação, o chanceler Abba Eban, sabia da operação. Os agentes capturaram o fugitivo nazista Adolf Eichmann, gestor do envio de judeus para campos de extermínio, a metros da casa em que vivia com outra identidade, em San Fernando, distante 20 km da capital do país.
Em clara violação diplomática, levaram Eichmann a Israel sem informar o governo argentino. Na volta, sedaram o nazista, o vestiram de comissário de bordo, colocaram uniforme igual, disseram no aeroporto que o colega “exagerou na bebida” e o embarcaram com passaporte falso. Eichmann foi condenado à morte em Israel em 1961 e a pena, executada em junho de 1962.
Em outra missão, em 1996, o fabricante de bombas palestino Yahya Ayyash teve a cabeça dilacerada por uma bomba de 50 gramas plantada em seu celular e detonada remotamente. Em 2020, tiros de metralhadora controlada por inteligência artificial mataram o cientista nuclear iraniano Mohsen Fakhrizadeh, suposto colaborador do programa militar de seu país.
Após o episódio de Ayyash, líderes do Hamas e Hezbolah decidiram usar bips, pagers e walk-talkies, que funcionam em faixas distintas das definidas para telefones móveis, supostamente rastreados por Israel. Em vão: o Mossad descobriu a empresa da Hungria fabricante dos aparelhos e infiltrou agentes para introduzir os explosivos. Saldo: dezenas de mortos e milhares de feridos.