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Livro resgata em detalhes a epopeia de Orson Welles no Brasil

Crédito: Divulgação

Orson Welles acompanha filmagens em Fortaleza (Crédito: Divulgação)

Por Felipe Machado

RESUMO

• O livro It’s All True — A Odisseia Pan-Americana de Orson Welles narra a saga do cineasta pelo Brasil, da paixão inicial pelo País à tragédia na frente das câmeras
• O filme, que fazia parte de uma estratégia dos EUA para estreitar as relações com a América Latina na Segunda Guerra, nem chegou a ficar pronto

Em 1942, aos 26 anos, Orson Welles era visto como um prodígio de Hollywood. Havia acabado de deixar o mundo estupefato com Cidadão Kane, um dos filmes mais revolucionários da história do cinema. O jovem cineasta norte-americano desembarcou no Rio de Janeiro com um projeto audacioso: capturar a essência do carnaval brasileiro em technicolor, tecnologia de última geração utilizada apenas em superproduções épicas. Seu objetivo não se resumia apenas a registrar imagens da festa popular ­ — escondia uma estratégia de política externa. Por meio de uma espécie de intercâmbio cultural, ele queria fortalecer os laços entre os dois continentes como parte da “Política de Boa Vizinhança” dos EUA, que visava melhorar as relações diplomáticas com a América Latina durante a Segunda Guerra Mundial.

A história virou livro. Catherine L. Benamou, professora de Cinema na Universidade da Califórnia, registrou de forma minuciosa a experiência de Welles em solo brasileiro. It’s All True: A Odisseia Pan-Americana de Orson Welles (Ed. Unesp) revela a luta do cineasta para preservar o material filmado e o impacto cultural do projeto. Benamou destaca como Welles tentou mostrar a cultura afro-brasileira e a riqueza do samba, propondo uma visão autêntica do Brasil para o público americano.

Na praia, de roupa, como um bom “gringo” (Crédito:Divulgação)

Welles recebeu uma recepção calorosa ao chegar no Brasil. Vestido de paletó e gravata, ele desembarcou com um chapéu em mãos e, após se instalar no luxuoso Copacabana Palace, fez uma entrevista coletiva. “Vim ao Brasil para aprender”, disse. A humildade não combinava com ele, mas a confiança de quem logo se sentiu em casa parecia genuína. Welles expressou sua vontade de entender o país e sua cultura, mencionando até uma conexão pessoal, afirmando que “quase” nascera no Rio.

Diversão na temporada carioca (Crédito:Divulgação)

A dura realidade

O entusiasmo inicial logo deu lugar a uma realidade bem mais complexa.

Seu projeto cinematográfico, It’s All True, visava explorar a diversidade cultural da América Latina, da vida dos toureiros no México, a história do jazz e o Carnaval brasileiro.

A primeira etapa das filmagens no Brasil, entre 15 e 17 de fevereiro de 1942, foi um espetáculo vibrante. Welles e sua equipe capturaram:
o cortejo do Rei Momo na Avenida Rio Branco,
shows de frevo no Tijuca Tênis Clube,
a movimentação nas gafieiras da Lapa,
e as folias nas favelas da zona sul carioca.

Grande Otelo, Emilinha Borba e Linda Batista, entre outros, participaram das filmagens, refletindo o espírito de diversidade do Carnaval.

A jornada da jangada São Pedro no Rio de Janeiro: mar revolto afundou a embarcação e matou o líder Jacaré (Crédito:Divulgação)

No entanto, o projeto logo enfrentou obstáculos intransponíveis. O estúdio RKO e o governo norte-americano tinham expectativas específicas, que não estavam sendo cumpridas. Com as dificuldades enfrentadas durante a produção e a pós-produção, o projeto foi interrompido. A maior parte do material filmado foi perdida ou destruída.

Welles tentou então alterar os rumos do projeto. Em um encontro com o presidente Getúlio Vargas, revelou seus planos de viajar ao Nordeste para reconstituir a viagem da jangada São Pedro, sobre o qual leu na revista Time. Em setembro de 1941, quatro pescadores do Ceará partiram de Fortaleza para o Rio de Janeiro em uma jornada de dois mil quilômetros com o objetivo de se encontrar com Vargas e exigir melhores condições de trabalho.

O grupo era liderado por Manoel Olimpio Meira, o Jacaré. Welles iniciou as filmagens na Barra da Tijuca, usando uma prancha flutuante para dirigir as cenas com os jangadeiros, que interpretavam a si mesmos. No último dia, enquanto gravava os takes finais, a neblina e o mar revolto causaram o tombamento da jangada São Pedro. A embarcação foi destruída. Os outros três jangadeiros foram resgatados, mas o corpo de Jacaré nunca foi encontrado. “Eu sinto profundamente a morte de Jacaré”, declarou Welles, horas após o acidente. “Ele era um homem excepcional, um herói, um líder, uma inteligência viva, interessantíssima. Agora, mais do que nunca, há uma razão para continuarmos filmando. Esse filme será um tributo à memória de Jacaré.”

Cortejo do Rei Momo, no Rio de Janeiro: filmagens históricas se perderam com o tempo (Crédito:Divulgação)

Embora It’s All True nunca tenha sido completado, o trabalho de Welles e o livro de Catherine Benamou oferecem uma compreensão mais profunda da ambição e da frustração envolvidas nesse projeto cinematográfico. A história de Welles no Brasil é um testemunho da complexidade de tentar capturar e comunicar a diversidade cultural de um povo por meio do cinema, refletindo tanto uma promessa vazia quanto as dificuldades de um projeto grandioso que se perdeu no mar.

Welles à imprensa: “Ele não se considera gênio, nem acha que a fama traz felicidade”, afirma jornal (Crédito:Divulgação)

Filmagens no Brasil

Orson Welles em ação no litoral cearense
A equipe cinematográfica da RKO Studios, em 1942, usaria a moderna tecnologia Technicolor (Crédito:Divulgação)
Orson Welles (de camiseta branca) dirige um ensaio de Carnaval, com a banda de Ray Ventura (Crédito:Divulgação)