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Crimes sexuais avançam na máquina pública

Crédito: Rafael Vieira/AGIF/AFP

Ex-ministro Silvio Almeida: uma das figuras mais renomadas dos direitos humanos é denunciado por assédio sexual (Crédito: Rafael Vieira/AGIF/AFP)

Por Vasconcelo Quadros, Debora Ghivelder e Eduardo Marini

RESUMO

• As denúncias de assédio sexual contra o ex-ministro dos Direitos Humanos e Cidadania Silvio Almeida por parceiras de trabalho, entre elas a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, tomam volume
• As acusações colocam em pauta o número preocupante de casos de condutas sexuais inadequadas na máquina pública e em ministérios dos governos, incluindo o atual de Lula
• O Estado estruturalmente machista, dado a práticas medievais de subordinação da mulher aos instintos de quem controla o poder, infelizmente ainda está vivo

 

A extrema direita oportunista, no pior sentido do termo, não poderia contar com um prato tão farto para combater os direitos humanos. O escândalo envolvendo o ex-ministro Silvio Almeida, dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), e Anielle Franco, da Igualdade Racial, dois negros que encarnaram esperança de mudanças às minorias historicamente massacradas, era segredo de polichinelo. Há pelo menos nove meses o caso era conhecido pela cúpula do governo e dentro do próprio MDHC. Mas foi a divulgação estratégica de uma foto sem texto nem legenda,
na sexta-feira, 6, pela primeira-dama Janja Lula da Silva, que falou por mais de mil palavras, desatando uma série de denúncias e mostrando que um setor importante para a sociedade estava nas mãos de um gestor despreparado e autoritário, que, de acordo com as denúncias, se valia do cargo para constranger uma colega e subordinados numa dupla prática de assédio: o moral, confirmado por meia centena de servidores forçados a deixar a pasta, e o sexual, destruidor de biografias, numa revelação que chocou o País.

O caso Silvio Almeida é, no entanto, apenas o que veio à tona para lembrar que está bem vivo o Estado estruturalmente machista, dado a práticas medievais de subordinação da mulher aos instintos de quem controla o poder.

Foto sem legenda com beijo na testa de Anielle, postada por Janja, disse tudo (Crédito:@janjalula)

Como episódios desse peso despertam sobretudo divergências, uma parcela dos especialistas em Direito defende a tese de que ao menos o caso Almeida/Arielle deve ser configurado como importunação, e não assédio, por ambos terem o mesmo status de cargo na ocasião.

A advogada Adriana Calvo, especializada em denúncias de assédio, sublinha que a Justiça só entendia esse crime sexual se ficasse caracterizada a relação de poder. Hoje há o entendimento sobre a figura da intimidação sexual, que não exige relação de poder. Pode ser uma relação entre pessoas no mesmo nível hierárquico, mas que exista um clima hostil. “No caso do ministro e da ministra, eles estão na mesma relação de poder, mas entendo que pode haver assédio sexual por intimidação, coisa que o Direito já aceita.”

(Ricardo Stuckert)

“É necessário reconstruir os Direitos Humanos.”
Macaé Evaristo, nomeada por Lula para o lugar de Almeida

A relação dos políticos com mulheres que chegam a algum degrau do poder foi assim desde Dom Pedro I. Não seria diferente com Lula. Dados da Controladoria Geral da União (CGU) mostram que o atual governo deve bater novo recorde de registros de ocorrências de assédio e condutas sexuais inadequadas, cujo campeão histórico é ainda a gestão de Jair Bolsonaro.
Com 20 meses de governo Lula, foram registradas 764 denúncias, 75 delas com origem em ministérios.
Sob os quatro anos de Bolsonaro, foram 822 e 85 casos, o que indica que o governo Lula poderá superar esses números antes da metade do mandato.
É quase certo que eles estejam próximos por terem sido subnotificados no governo anterior e registrados com seriedade no atual. Ainda assim, o balanço parcial desses atos deploráveis na gestão Lula 3 merece muita atenção.

(Joédson Alves/Agência Brasil)

“Não é aceitável relativizar ou diminuir episódios de violência.”
Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial

Quando não havia CGU, assédio não era crime e as violências sexuais nem eram registradas.

No capítulo dos casos teoricamente mais folclóricos do que criminosos, ficaram famosas, na ditadura, as escapadas do último dos generais, João Figueiredo, com uma servidora do Palácio do Planalto.

O governo Fernando Collor foi palco de um estrondoso romance extraconjugal entre um ministro familiarmente bem resolvido, Bernardo Cabral, e uma ministra da Economia poderosa e cheia de apetite, Zélia Cardoso de Melo.

Itamar Franco nem se importou com os flashes ao ser fotografado no palco do Sambódromo, no Rio, de baixo para cima, ao lado da modelo cearense Lilian Ramos sem calcinha, embalada numa camisa que, da cintura para baixo, tudo exibia e nada encobria.

Biografia demolida

Mas nada se compara com o que houve nos governos Bolsonaro e Lula. O economista Pedro Guimarães, ex-presidente da Caixa, perdeu o cargo em junho de 2022 e ainda responde na Justiça por denúncias de assédio contra várias subordinadas. Almeida entra agora no labirinto judicial para explicar denúncias que só aumentam. É suspeito tanto por suposto desvio sexual, em inquérito aberto na Polícia Federal, quanto de acusações de assédio moral em investigação instaurada esta semana pelo Ministério do Trabalho. Sua vida não será fácil daqui para frente.

Demitido por Lula, que concordou com a decisão de Janja em expor o caso com a foto beijando a testa de Anielle em sinal de acolhimento, Almeida — um advogado protegido por grandes bancas do Direito, autor de um livro em que define o conceito de racismo estrutural, o conjunto de ações individuais e institucionais de preconceito e repressão de uma etnia contra outra — foi do céu ao inferno em menos de 24 horas.

Nunca antes uma biografia foi demolida em tão pouco tempo. É um baque em sua vida pessoal e profissional, ambas destroçadas. Ele agora sai do conforto do poder, de onde pretendia migrar para disputar uma vaga ao Senado por São Paulo, para peregrinar como alvo da polícia pelos órgãos de controle. Há especulações sobre um convite que teria recebido para um cargo na ONU no exterior.

Almeida não é respeitado apenas no Brasil. Pertence ao Brazil Lab, da Universidade de Princeton, e foi professor visitante nas também americanas Duke e Columbia. A glória acadêmica pode ficar ameaçada se a Comissão de Ética Pública da Presidência da República (CEP) entender, ao fim do processo movido, que ele merece censura pública.

ISTOÉ conversou com uma bem informada fonte ligada à CEP, com a condição de que não fosse identificada. Segundo ela, caso ocorra a censura, “será razoável pensar em impedimentos como participar de conselhos administrativos de estatais ou voltar a cargo público”. Lula, garante a fonte, não era próximo do ex-ministro. “Foi indicação de advogados progressistas, que o presidente seguiu porque Almeida era estrela, tinha o perfil.”

O processo na CEP está em fase inicial, quando o ex-ministro deve oferecer informações em dez dias, a contar daquele em que foi afastado. Quando o processo retornar à CEP haverá o sorteio do relator do caso. “Este ano não dará tempo para julgamento, que deverá ficar para meados de 2025”, calcula a fonte.

Há, no governo, a ideia de equiparar casos sexuais a atos de improbidade e demitir o servidor agressor. Lula estaria preocupado com o estado psicológico de Almeida. Dentro do governo, circula o rumor que ele estaria abalado a ponto de pensar em suicídio. “Ouvi falar disso, outras pessoas também, mas não sei dizer se é verdade.”

Cólera e ciúme

A CGU armazena relatos contundentes sobre assédios morais cometidos por Almeida. Um deles é do ex-Secretário Nacional de Políticas Para Crianças e Adolescentes, Ariel Castro Alves, que, mesmo sendo de confiança da família presidencial, foi defenestrado sem dó nem piedade pelo ex-ministro após receber em sua sala duas visitas de Janja fora da agenda do ministério. Como mostrou a ISTOÉ, entre enciumado e colérico, Almeida o acusou de passar por cima de sua autoridade, o proibiu de dar entrevistas e deixou em saia justa a primeira-dama, que desejava apenas conhecer as ideias de Ariel e teve de engolir a desfeita para não interferir nas decisões do marido. Guardou a antipatia no freezer e a desengavetou com a singela foto publicada nas redes sociais pouco antes de embarcar para o Catar.

Lula o havia segurado por força do lobby de advogados no governo, conforme comentou a fonte do CEP e como mostrou ISTOÉ na edição de 2 de agosto. Mas desta vez, com um assédio confirmado pela ONG que trata do tema, a Me Too, não houve jeito. Sugeriu que ele se demitisse. Como Almeida resistiu, demitiu-o bruscamente. “Então você está exonerado.”

O presidente acabou revelando que sua métrica para demitir ministros tem critérios diferentes e é aplicada de acordo com o perfil da personagem. A Polícia Federal tem todas as informações que ele precisa para dispensar o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, por suspeitas de corrupção, mas nesse caso ele enxerga necessidade de uma denúncia formal pela Procuradoria Geral da República (PGR) ou uma condenação.

Para o lugar de Almeida, Lula indicou a deputada estadual mineira Macaé Maria Evaristo dos Santos (PT-MG), reconhecida autoridade nas áreas de educação e direitos humanos, mas também envolvida em suspeitas de desvios.
• Ela é ré numa Ação Civil Pública aberta em 2016 por superfaturamento equivalente hoje a R$ 6,4 milhões, na compra de uniformes escolares quando foi secretária municipal de Belo Horizonte, entre 2005 e 2012.
Em outro caso, ocorrido quando era secretária estadual de Educação, entre 2015 e 2016, foi apontada como responsável pela compra de carteiras escolares superfaturadas com prejuízo de R$ 2,6 milhões, sobre o qual fez acordo para encerrar 13 ações, pagando R$ 10,4 mil.
Ela nega qualquer participação ou benefício pessoal e afirma ter sido responsabilizada mais pelos cargos que exerceu.

Desespero

Ainda ministro, na última tentativa de se segurar no cargo, Almeida usou a estrutura de comunicação do governo para acusar a Me Too, que confirmou ao site Metrópoles a presença de Anielle entre as denunciantes. Disse que a fundadora da ONG, Marina Ganzarolli, tentou interferir na contratação dos serviços do Disque Denúncia por uma empresa privada num hipotético caso de superfaturamento equivalente a R$ 24 milhões. Procurada por ISTOÉ, Ganzarolli não quis falar, mas a assessoria do grupo emitiu nota negando as acusações e apontando que Almeida reagiu com a tática comum dos acusados: atacando “o mensageiro” para desviar o foco das denúncias.

A crise no MDHC revela que é precária a atenção do Planalto com a área de direitos humanos, embora o presidente tenha subido a rampa no dia da posse cercado por lideranças das minorias ignoradas no governo anterior. Um dos gestos mais simbólicos e prioritários de Lula ao tomar posse do mandato três foi o de dividir o ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos de Bolsonaro, tocado por Damares Alves, em quatro pastas (Direitos Humanos e Cidadania, Igualdade Racial, Povos Indígenas e Mulheres) justamente para ter, entre outras coisas, um intelectual negro do quilate de Almeida e uma mulher negra com o perfil de Anielle, símbolo da luta para revelar mandantes e autores do assassinato político de Marielle, o mais escandaloso dos últimos tempos no País. Até para exibir cenas e passagens simbólicas e emotivas como a da subida na rampa com representantes variados da diversidade. E aí ele — justamente ele — é denunciado por assédio sexual contra ela — justamente ela.

Ativistas avaliam que o efeito é devastador para as políticas públicas em andamento, entre elas as de anistia a perseguidos na ditadura e de buscas a desaparecidos políticos. Macaé tomou posse na quarta, 10, prometendo levantar um diagnóstico do setor. “É necessário reconstruir os direitos humanos”, acrescenta Ariel. Ele disse que os demais debandaram por não suportarem as pressões de Almeida. Outro ex-secretário, Leo Pinho, contou que desde dezembro passado se sabia no ministério que Anielle havia sido abusada pelo colega. “É o pior gestor com quem trabalhei.” Silvio Almeida sofrerá para recuperar o prestígio.

O que diz a lei Assédio sexual foi tipificado como crime em 2001, com pena de um a dois anos de prisão

Sancionada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a Lei nº 10.224/01, de 15 de maio de 2001, tipificou o assédio sexual como crime. Ela alterou o Decreto-Lei nº 2.848 do Código Penal, de 1940, incluindo o artigo 216-A, com o seguinte texto: “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena prevista: detenção de um a dois anos”. Foi um avanço.

Antes dela, o assédio era enquadrado como crime de constrangimento ilegal, artigo 146 do Código Penal, com pena de três meses a um ano ou multa. Se o assediador for servidor público, será alvo de um processo administrativo e poderá ser punido nas esferas civil e administrativa, além da penal.

Abusos em série
Políticos, administradores públicos e até ex-presidentes protagonizam condutas sexuais inadequadas. Relembre casos

“São fáceis”

(Divulgação)

Em maio de 2022 o deputado paulista Arthur do Val perdeu o mandato por afirmar, diante dos dramas da guerra, num grupo de amigos no whatsapp, que “as mulheres ucranianas são fáceis porque são pobres”. Ele estava em viagem oficial ao país.

“Pintou clima”

(Divulgação)

Bolsonaro passeava de moto por uma cidade satélite de Brasília, em 2020, e parou ao ver meninas venezuelanas. “Tirei o capacete, e olhei umas menininhas (…) bonitas, de 14, 15 anos. Pintou um clima”, disse sem nunca explicar o que aconteceu

Sem limite

(Divulgação)

O deputado Fernando Cury (Cidadania) protagonizou em dezembro de 2020 deprimente cena de abuso sexual numa sessão da Alesp transmitida ao vivo: aproximou-se da deputada Isa Penna (PSOL) e a abraçou até tocar a mão no seio direito da colega

Poder sujo

(Suamy Beydoun)


Pedro Guimarães é réu em ação que tramita sob segredo na Justiça Federal de Brasília. Já é acusado de assédio sexual por cinco vítimas, todas funcionárias da Caixa Econômica Federal, que ele presidiu até ser demitido, em junho de 2022

“Ele levantou minha saia e colocou a mão nas minhas partes íntimas”
Isabel Rodrigues detalhou nas redes sociais o assédio do ex-ministro Silvio Almeida. Principais trechos:

“Sou professora, branca e antirracista. Fui vítima de violência sexual do ministro dos Direitos Humanos e Cidadania Silvio Almeida. Estou aqui para somar minha voz às das mulheres porque acredito que foram muitas. (…) Fui amiga de Silvio na Escola de Governo, onde fui aluna e professora. No dia 03 de agosto de 2019, um sábado, acompanhei um curso dado por ele. No almoço, com alunos e professores, sentei-me ao lado esquerdo do Silvio. Ele levantou minha saia e colocou a mão nas minhas partes íntimas. Fiquei estarrecida e com vergonha. A violência foi tema na terapia e em conversas com irmãs e amigos próximos. Mandei mensagens questionando — se forem recuperadas, poderão comprovar —, mas não foram respondidas. Tempos depois, ele atendeu uma ligação. Disse: ‘está louca? Quantas vezes nos encontramos e nada ocorreu?’. Respondi: ‘Mas naquele sábado ocorreu um crime — e você, advogado, sabe que foi um crime’. Ao final da ligação ele admitiu: ‘estou muito mal. Iria pegar um voo, mas irei procurar imediatamente uma terapia para entender porque fiz isso com uma amiga de quem gosto tanto’. Achei que ele queria que eu tivesse pena dele — e tive. Pena do agressor. Muitos vão dizer que assumi publicamente para me promover, mas se eu não for solidária agora às mulheres abusadas quando deverei ser? (ela chora no vídeo) (…) Não sei por qual motivo ele se achou no direito de invadir minhas partes íntimas sem meu consentimento. Pensei muitas vezes em denunciar. Não o fiz por vários motivos. O maior foi o medo de voltar contra mim. Silvio tem conhecimento da lei. Poderia facilmente fazer as coisas mudarem de rumo. (…) As mulheres abusadas estão sendo julgadas como mentirosas, parte de um grupo contra o ministro. (…) Não somos objetos. O corpo do outro é um templo sagrado que deve ser respeitado. Deve!!!”

(Divulgação)

“Não sei por qual motivo ele se achou no direito de invadir minhas partes íntimas sem consentimento.”
Isabel Rodrigues, professora