Entenda como alteração da Lei da Ficha Limpa pode liberar Bolsonaro e Garotinho
Por Marcelo Moreira
RESUMO
• Projeto que altera prazos para cumprimento de penas é adiado, mas começa a ganhar apoio no Senado
• Na Câmara, Arthur Lira acena com o avanço de uma lei de anistia aos envolvidos em 8 de janeiro
• Uma excrescência
A salvação de políticos que estão inelegíveis por corrupção ou atos antidemocráticos pode custar muito caro ao País e demolir alguns pilares da ética e do comportamento político brasileiro. É dessa forma que juristas encaram as tentativas de “flexibilizar “ – o eufemismo é usado aqui de forma irônica – as regras de combate aos crimes eleitorais cometidos por autoridades e parlamentares que estão em curso na Câmara e no Senado. Em jogo, está a relevância da Lei da Ficha Limpa ou a punição a quem atenta contra a democracia e apoia, incentiva e insufla tentativas de golpe de Estado.
● No Senado, há resistências inesperadas à votação célere de alterações na Lei da Ficha Limpa e o relator do projeto já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Weverton Roha (PDT-MA), pediu o adiamento da votação em plenário nesta semana, o que deve ocorrer somente depois das eleições municipais.
● Na Câmara, a movimentação para anistiar todos os envolvidos nas depredações às sedes dos Três Poderes na tentativa de golpe no 8 de janeiro de 2023 – que pode beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro – está mais avançada e tem sido contaminada pelo clima beligerante da sucessão do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL).
A Lei da Ficha está sendo mais uma vez torpedeada por um projeto sorrateiro proposto pela deputada Danielle Cunha (União-RJ), filha do ex-deputado Eduardo Cunha, que presidiu a Câmara em 2016, comandando o impeachment de Dilma Rousseff, mas que foi cassado e preso por corrupção.
Aprovado pela Câmara, o texto foi encaminhado ao Senado e, se aprovado pelos integrantes do Salão Azul, vai alterar os prazos para cumprimento de penas em casos de condenação. Em vez de cumprir a punição após o fim do mandato, o prazo passaria a contar a partir da publicação da sentença.
Com essa redução mais curta de tempo, políticos como Cunha, Jair Bolsonaro, Anthony Garotinho (ex-governador do Rio) e o ex-ministro José Dirceu, por exemplo, poderiam ser beneficiados.
A situação ocasionou algo inusitado, onde partidos antagônicos, como PL e PT, ficaram do mesmo lado em um primeiro momento, gerando incômodo entre bolsonaristas e petistas mais à esquerda. A repercussão negativa, com alguns protestos tímidos no Senado, forçou uma reação do governo, que empreendeu uma série de manobras para obstruir a pauta. Foram bem-sucedidos e obrigaram Rocha, o relator, a sugerir, esta semana, o adiamento da votação, sendo atendido.
A aparente derrota dos defensores do projeto está sendo considerada apenas um recuo estratégico para que o tema ganhe mais adeptos com o tempo e não seja contaminado pela eleição municipal, que teria potencial explosivo para ser usado na campanha.
Rocha evita a “politização” do tema e afirma que o projeto aperfeiçoa a legislação eleitoral, conferindo mais objetividade e segurança jurídica ao fixar o início e o final da contagem de inelegibilidades. “As regras previstas no projeto de lei pretendem aperfeiçoar a legislação, especialmente no tocante ao prazo de duração de inelegibilidade, aqui igualado e limitado em todas as hipóteses, para coibir distorções que hoje ocorrem, em que políticos e detentores de mandato podem ser condenados a sanções de inelegibilidade, e incidem de forma desigual, configurando-se, assim, afronta ao princípio constitucional da isonomia.”
Para o jurista Marlon Reis, da Associação Brasileira de Eleitoralistas, e um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, a sociedade precisa ficar atenta às manobras que podem enfraquecer a eficácia legal das ferramentas de combate aos crimes de corrupção. “O texto atenta contra a soberania popular, contraria o interesse público e serve apenas para dar livre acesso a cargo eletivos a indivíduos que deveriam estar fora do processo político.”
Anistia ampla
Na Câmara, a outra frente de batalha para erodir o arcabouço legal que pune políticos malfeitores ou flagrados em irregularidades, está sendo afetada pelo processo de sucessão de Arthur Lira (PP-AL). Ele negocia, de forma antecipada, para ter como seu candidato o deputado Hugo Motta, que contaria até mesmo com a bênção do presidente Lula.
Entretanto, para evitar correr riscos, manobra para construir o apoio dos políticos conservadores e acena com a possibilidade de permitir a progressão de um projeto que preveja a anistia ampla e geral a todos os envolvidos nos ataques de 8 de janeiro de 2023. Seriam beneficiados militares, civis e políticos, incluindo o ex-presidente Bolsonaro.
Desarmar a bomba
Parlamentares governistas imaginavam que a iniciativa prosperasse, já que há políticos do seu entorno que estão inelegíveis, como é o caso de José Dirceu. Mas a esquerda petista articula formas de desarmar a essa “bomba”, fazendo pressão no Palácio do Planalto para derrotar a aprovação de projetos de anistia, propondo a revisão, inclusive, de qualquer acerto com o governo que inclua a indicação de Lira e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para ministérios em 2025.
Bolsonaro encampou de vez a iniciativa e fez novo apelo público de anistia geral aos vândalos de 8 de janeiro em eventos públicos, como o ocorrido no 7 de setembro na avenida Paulista, durante os protestos contra as decisões do ministro Alexandre Moraes (STF). Pediu anistia ampla para as pessoas que chamou de “patriotas”. Ele conta com uma defensora fiel na presidência da CCJ da Câmara, a Carol de Toni (PL-SC), que não esconde fazer manobras pela anistia no Congresso.
Entre os juristas, o mais contundente crítico à iniciativa dos bolsonaristas é Walter Fanganiello Maierovitch, escritor e ex-desembargador. Em um artigo, escreveu que a simples ideia de anistia ampla é um “tapa na cara de todos legalistas e democratas”, pois pretende livrar da Justiça executores, financiadores e autores intelectuais da tentativa do golpe – com grandes chances de beneficiar Jair Bolsonaro, alvo de investigações no STF.
Instrumento legal
Legislação foi criada para reduzir presença de políticos sem idoneidade nas eleições
A Lei da Ficha Limpa é um exemplo de como é que uma mobilização popular pode levar a avanços importantes na legislação mesmo com eventual relutância do Congresso.
• Sua origem foi uma petição popular com base em texto sugerido por juristas, entre eles o juiz Marlon Reis.
• A petição obteve 1,6 milhão de assinaturas e foi aprovada pelos parlamentares, transformando-se na Lei Complementar 135, de 2010. De acordo com Marlon Reis, a ideia é aumentar a idoneidade dos candidatos e reduzir a possibilidade de que pessoas se elejam em busca de algum tipo de imunidade parlamentar, por exemplo.
• A lei proíbe que políticos condenados em decisões colegiadas de segunda instância possam se candidata, mesmo que ainda exista possibilidade de recursos. Também torna inelegível por oito anos um candidato que tiver o mandato cassado ou renunciar para evitar a cassação. O prazo conta a partir do momento em que ele deixa o cargo.
• O projeto que deu origem à lei foi aprovado na Câmara dos Deputados no dia 5 de maio de 2010 e no Senado no dia 19 de maio, de 2010, por votação unânime. Foi sancionado em 2012, e o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou a lei constitucional e válida para as eleições subsequentes.