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“Toda mulher precisa ser feminista”, diz Vera Fisher

Crédito: agência @amarelourca

Vera Fischer: “Meu legado é tudo que eu faço, dê certo ou dê errado” (Crédito: agência @amarelourca)

Por Melina Guterres, de Gramado

Vera Fischer não tinha a ambição de se tornar atriz. Suas aspirações de infância eram ser arqueóloga e bailarina. Foi só aos 25 anos que passou a enxergar a atuação como carreira viável. Para ela, atuar nas pornochanchadas nos anos 1970 era um forma de contornar a censura da ditadura militar. Tem orgulho de ter feito parte da resistência cultural da época. Entre as muitas personagens que interpretou, sua favorita é Helena, da novela Laços de Família. A atriz de 72 anos planeja o lançamento de uma cinebiografia, onde revelará aspectos íntimos de sua vida, incluindo as fases mais difíceis que enfrentou. Também quer dirigir projetos que apresentem mulheres fortes e empoderadas — no teatro, o desejo imediato é produzir peças inspiradas na obra do dramaturgo Nelson Rodrigues. Na última edição do Festival de Gramado, conversou com ISTOÉ após receber um troféu por sua contribuição ao cinema brasileiro.

Cinema, TV ou teatro. O que prefere fazer e por quê?
Essa pergunta não vale para mim. São trabalhos e formatos tão diferentes que nem consigo escolher um preferido.

Foram muitos personagens interpretados ao longo dos anos. O que leva de cada um deles?
Tudo. Cada uma das minhas personagens nasce de uma mistura do texto escrito. O que sinto ao estudá-lo é o que coloco de mim para aquela personagem. No fundo, são todas uma fusão do que o autor pensou e do que eu senti.

E o que cada personagem leva da Vera Fischer?
Para mim, é como se cada personagem também fosse a Vera.

Acredita que atuar é um desafio constante? O que significa ser atriz para você?
Ser atriz é um ato de entrega, é aprender todos os dias a ser e agir como outras pessoas. Amasso e misturo outro ser humano comigo até que sejamos uma coisa só.

Muita coisa aconteceu no mercado audiovisual e da dramaturgia ao longo dos seus 52 anos de carreira. Quais foram as principais mudanças?
Você se lembra quando as fitas de vídeo apareceram e todo mundo dizia que o cinema ia acabar? Que os livros sumiriam das estantes com os e-books? Nada disso aconteceu. As formas de produzir e consumir foram mudando com as novas tecnologias. O que acontece no nosso mercado é exatamente isso. A internet, as redes sociais e os streamings estão trazendo novas possibilidades. No geral, acho essas mudanças positivas.

“A Helena criada por Manoel Carlos na novela Laços de Família já nasceu heroína. Acho que nunca fiz uma personagem tão forte e real. Ela era muito corajosa” (Crédito:Alex Carvalho)

Como é a sua relação com a literatura? Pretende escrever um novo livro?
Meu hábito de leitura veio bem antes de ver TV, na verdade desde antes de ela existir. Amo ler. Tenho trabalhos escritos, mas alguns projetos devem acontecer antes no teatro e no streaming. Os livros estão na fila.

Há a expectativa de que seja produzido um filme sobre a sua vida. Em que pé está esse projeto? Já está em produção, alguma previsão de lançamento?
Estou trabalhando com duas mulheres muito antenadas às possibilidades que possam me interessar. Elas me propuseram esse projeto, me apresentaram a uma diretora fantástica, mas ainda não dá para contar muitos detalhes. Na hora certa vou divulgar tudo.

Que legado você gostaria de deixar para o seu público?
Meu legado é tudo que faço, dê certo ou dê errado. Mas ainda estou viva e vou passar os 100 anos trabalhando. Isso se não começarem a vender coração, ossos e outras coisas no supermercado. Se venderem, compro uns órgãos novos e vivo mais 200.

Hoje em dia o espaço para falar sobre a violência que as mulheres sofrem é maior que décadas atrás. Quando entendeu que havia sido vítima de assédio?
O assédio sempre foi e ainda é autorizado pela sociedade. Infelizmente, ainda não mudamos isso. É preciso encorajar as mulheres a fazerem as denúncias, o que também é muito difícil. Por causa dessa autorização antiquada e doente, algumas mulheres são reféns de uma maneira que torna a denúncia quase impossível.

Recentemente veio à tona falas suas sobre assédios e violências sexuais sofridas ao longo de sua carreira. Poderia contar um pouco mais sobre esse assunto?
Fui muito assediada no cinema, na TV e no teatro. Mas sou uma pessoa meio bem humorada, divertida. Eu tinha algumas saídas para conseguir me salvar. O constrangimento e o assédio sempre houve, o que me deixou muito humilhada. Mas nunca sucumbi. Costumava dar respostas que deixavam os homens enojados. E deixar um homem enojado era o máximo.

Como busca trazer o tema hoje para as mulheres que sofrem com isso nos mais diversos meios?
A exposição, o machismo, a falta de credibilidade, muita coisa ruim vem no pacote junto com a denúncia. Precisamos evoluir rápido. Estou com pressa.

Ao analisar sua trajetória, se considera feminista?
Sim. Toda mulher precisa ser feminista. O feminismo não é o oposto do machismo e temos que dizer isso sem cansar. O machismo prega a superioridade dos homens sobre as mulheres. O machismo autoriza mortes.
Qual seria, então, uma boa definição para o feminismo, na sua opinião? Ser feminista é querer a igualdade que a mesma sociedade que autoriza o abuso, nos tirou.

Outro assunto muito discutido hoje é o etarismo. Como esse tema chega até você? Já sofreu preconceito? Como lida com o envelhecimento?
Sempre respondo a mesma coisa quando o assunto é envelhecer. Vivi cada década brilhantemente, fiz tudo o que quis, curti tudo que tinha para curtir. Minhas marcas do tempo são os sinais da vida que escolhi. Gosto muito delas. Vivo bem com os espelhos em casa – e olha que tenho espelhos enormes.

O que teria a dizer para as mulheres e a sociedade em geral sobre esse tema?
O etarismo é um problema mundial, mas no Brasil é ainda mais sério. Hoje, quando existe o papel de uma mulher mais velha, selecionam uma atriz jovem e fazem maquiagem para ela envelhecer. Como entender essa lógica? Nós, atrizes, somos mutantes, mas a questão é bem mais profunda. Vamos ter que continuar batalhando e falando sobre isso. O tempo é garantia de evolução – eu fico cada vez melhor à medida em que ele passa.

“Considero a atuação no longa Intimidade um divisor de águas na minha carreira. Para produzir o filme, eu e meu primeiro marido, Perry Salles, vendemos nosso apartamento” (Crédito:Divulgação)

É importante que o mercado produza mais filmes sobre a atitude das mulheres? O que é ser mulher para você e como gostaria de ver esse universo retratado nas novas produções?
Posso responder somente o que é ser uma mulher branca e privilegiada. Mesmo assim, é fazer muito mais esforço que os homens para conseguir concretizar qualquer coisa. No trabalho, nas produções e até no cotidiano. O esforço das mulheres têm de superar mil vezes o dos homens para atingir qualquer objetivo. E olha que estou falando do meu lugar, que ainda é muito melhor do que o da maioria das mulheres no País.

Você costuma dizer que sua personagem favorita é a Helena, da novela Laços de Família. Por que essa escolha?
A Helena de Manoel Carlos já nasceu heroína. Acho que nunca fiz uma personagem tão forte e tão real. Na ficção, a filha teve um problema com o namorado, e depois sofreu ao enfrentar o câncer. Não satisfeita, essa mulher fica grávida do primo para salvar a filha. Ela era muito corajosa.

Na TV, além do destaque pela atuação em Laços de família, o que mais gostou de fazer?
Certamente a novela Coração Alado, da grande Janete Clair. Também adorei participar da minissérie Desejo, da minha querida amiga Glória Perez.

E no cinema, o que você destacaria da sua carreira?
A atuação no longa Intimidade, de 1975, do britânico Michael Sarne e de Perry Sales. Considero esse filme um divisor de águas na minha carreira de atriz. Eu e meu primeiro marido, o Perry Salles, tínhamos o sonho de produzir um filme. Então decidimos vender o nosso apartamento. A Embrafilme não quis colocar dinheiro na produção porque o Michael era um cineasta estrangeiro. Eu ainda não tinha tanta habilidade, nem jogo de cintura para improvisar, mas o diretor queria que eu fizesse isso. Tive que buscar coisas dentro de mim que estavam adormecidas.

E qual foi a repercussão desse trabalho?
Ninguém esperava isso da Vera Fischer. Foi um sucesso de crítica. Para mim foi uma lição. Ganhei confiança e pensei “posso fazer, gostaram de mim”. Era a história de uma mulher que foi muito massacrada pela mídia. Foi mais ou menos o que aconteceu comigo.

Acredita que foi estigmatizada ao longo de sua carreira artística em razão de ter sido Miss Brasil nos anos 1960?
Claro que as pessoas falam, mas nunca liguei muito para isso porque fui muito bem criada. Fui miss com 17 anos, em 1969. Encarei os anos 1970 com um machismo escancarado. Não sei como consegui sobreviver aos ataques machistas, que foram severos. E duraram muito tempo, aconteceram nos anos 1970, 1980 e até em 1990.

Como definiria Vera Fischer?
Recorro à etimologia básica: ser Vera é ser verdadeira.