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O X da questão: até onde vai a rebeldia de Musk contra Alexandre de Moraes?

Crédito: Pexels

O X de Elon Musk: sem representação jurídica no Brasil, ao contrário da Starlink, outra empresa de Musk, que provê serviços de internet usados na Amazônia, no agronegócio e nas Forças Armadas (Crédito: Pexels)

Por Vasconcelo Quadros e Eduardo Marini

RESUMO

• Congresso se omite em definir código para regular conteúdos e posturas das redes sociais e plataformas
• O vácuo regulatório faz o País virar alvo de atitudes patéticas, como a do bilionário Elon Musk
• E obriga o Supremo Tribunal Federal a “legislar” no lugar de deputados e senadores
• Mas ainda há tempo para criar uma legislação moderna como a da União Europeia

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), encerrou repentinamente, em junho, um debate de quatro anos sobre o Projeto de Lei 2630/2020, o PL das Fake News, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), e aprovado no Senado, impondo limites às redes sociais e plataformas de mídia. No mesmo instante, anunciou um “rigoroso” grupo de trabalho, com 20 parlamentares, para começar, tudo de novo, o debate no Parlamento. O tamanho e a composição do colegiado não deixava dúvida: a intenção, respaldada pela numerosa bancada da direita, era enfileirar muitos para ninguém sair do lugar e ficar tudo como estava. Apenas cinco dos indicados pertencem a partidos de esquerda favoráveis à regulação do conteúdo desses canais. Passados três meses, quando o novo relatório deveria estar pronto para ser votado, o tal colegiado sequer foi instalado.

(Pedro França)

“A ausência de legislação como a prevista no PL 2630 de fato abre espaço para interpretações criativas e abusos.”
Deputado Alessandro Vieira (MDB-SE), autor do PL das Fake News

Lira abriu um vazio institucional que, uma vez mais, foi preenchido por decisões necessárias do Supremo Tribunal Federal (STF). O capítulo mais recente é o bloqueio do X, multando e enquadrando o dono da rede, Elon Musk, o bilionário que está derretendo o próprio patrimônio no Brasil pela postura arrogante de quem confunde liberdade de expressão com direito ilusório de difundir mentiras e mensagens de ódio postadas por golpistas de 2022. Além de ignorar leis, desobedecendo ordens para retirar conteúdo ofensivo, Musk intensificou ataques a autoridades. Como o Congresso não decide, o STF, dentro das atribuições constitucionais, acaba por “legislar”.

Divulgação
(Zeca Ribeiro)

“Musk se recusa a cumprir o Código Civil, que obriga toda empresa estrangeira a ter representação no País. Não deixou ao Judiciário outro caminho a não ser aplicar sanções.”
Deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do PL das Fake News arquivado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL)

Nestes tempos de omissão política, a ação da maioria dos onze integrantes do STF tem sido agir, quando provocada, desagradando os mesmos parlamentares que reclamam de interferência do Judiciário na política. Musk achou que, com ele, seria diferente, e tentou se aproveitar do vácuo. Apostou na lógica do pior Congresso da História, que se perde em conchavos e tem apetite para morder o Orçamento, mas pouca atitude diante da balbúrdia criminosa das redes. Em 2014, o Congresso aprovou o Marco Civil da Internet, que estabelece direitos, garantias e deveres para exploração e uso da web. Em 2020, após quatro anos de debate, o Senado aprovou o PL das Fake News.

Moraes suspendeu o X no País, que só voltará quando tiver representante jurídico (Crédito:Ton Molina)

 

(Divulgação)

Autor de uma proposta da CPI da Toga que nunca foi em frente, o senador Vieira é crítico dos amplos poderes exercidos pelo ministro Alexandre de Moraes contra golpistas, mas considera Musk um maluco bilionário que domina um segmento de serviços não regulamentados por falha do Congresso e operados longe do interesse público. “A ausência de legislação como a prevista no PL2630 de fato abre espaço para interpretações criativas e abusos”, apontou o vácuo a ISTOÉ.

Musk só obedece leis quando elas são convenientes aos seus negócios (Crédito:Sergei Gapon)

O STF acumulava ações impetradas contra plataformas não julgadas porque os ministros aguardavam regulação mais firme e abrangente, travada por Lira ao não levar ao plenário o relatório do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), por pressão das bancadas ruralistas, evangélica e da bala. Lira corteja o grupo, majoritário, para garantir apoio ao nome que indicará para sua sucessão no ano que vem. O STF acabou agindo com base no Marco Civil, Código Civil e outras normas.

Silva reuniu experiências internacionais, depoimentos de especialistas, audiências, consultorias e debates para, ao final, ver seu relatório no arquivo. Um dos 20 do colegiado, ele afirmou a ISTOÉ que o STF está apenas cumprindo a lei. “Musk se recusa a cumprir o Código Civil, que obriga toda empresa estrangeira a ter representação no País. Não deixou ao Judiciário outro caminho a não ser aplicar sanções”.

A tendência é que Lira entregue o eventual novo relatório a um parlamentar da direita. “Não pode paralisar a tramitação de um tema tão sensível”, resume o deputado.

Primeira Turma do STF deu apoio à decisão de Moraes (Crédito:Gustavo Moreno)

Bote oportunista

Como Elon Musk recusou-se a retirar conteúdo ofensivo e nomear representante, Moraes bloqueou a plataforma e aplicou multa diária de R$ 50 mil a quem utilizar serviços de VPN para acessar o X.

No embalo, suspendeu atividades da Starlink, provedora de internet por satélite do mesmo grupo, dona de 5,4 mil das 9,7 mil unidades atualmente na órbita na Terra, 56% do total.
O percentual deverá pular logo para 75% e a meta da empresa é bater nos 12 mil até 2027.
Em mais um bote oportunista, a extrema direita promete usar o bilionário para desgastar Moraes no ato de 7 de setembro pela anistia a Bolsonaro, em São Paulo.
Atento, o presidente Lula, em desagravo, convidou o ministro a ficar ao seu lado na tribuna de autoridades do festejo oficial, em Brasília.

Em outra atitude abaixo da crítica, o Partido Novo, apêndice da direita bolsonarista, entrou com arguição de descumprimento de preceito fundamental no STF pedindo que o bloqueio seja levado ao plenário da Corte. A relatoria ficou com o ministro Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, sobre o qual a direita alimenta expectativas. Um dos parlamentares do partido que mais reclamam de interferência do Judiciário, Marcel Van Hattem (Novo-RS) comemorou a escolha. “Cabe a ele dar a liminar que suspende a censura”, escreveu no X usando atalho digital para driblar o bloqueio.

Na quinta, 5, Nunes Marques decidiu submeter a decisão ao plenário. Muito esforço para nada. Com cinco dos onze votos garantidos na votação da Primeira Turma, resta apenas um para fechar a maioria. No limite do otimismo, a direita terá no plenário dois votos: André Mendonça e Nunes Marques. Mesmo que este decida monocraticamente abolir a suspensão, a medida cairá imediatamente. Chance de reversão? Zero.

Starlink, de Musk, controla 56% dos satélites atualmente na órbita da Terra (Crédito:Divulgação)

Na terça-feira, 3, a Starlink voltou atrás e bloqueou acessos ao X no Brasil. O X vai continuar suspenso até que indique representante e pague R$ 18 milhões em multas. A Starlink, que domina serviços de internet no norte do País e fornece sinais a navios, agronegócio, Forças Armadas e até de populações indígenas na Amazônia, poderá continuar a atuar desde que se sujeite às regras brasileiras, semelhantes às do mundo desenvolvido.

Bilionário é admirador e apoiador radical de Donald Trump (Crédito:Divulgação)

Figura Polêmica

Homem mais rico do mundo, com fortuna de US$ 243 bilhões (R$ 1,3 trilhão), equivalente a 12% do PIB brasileiro, Musk manda, entre outras coisas, nas fatias mais gordas dos mercados de satélites (Starlink), carros elétricos (Tesla) e exploração espacial privada (Space X).
O maior desejo é mandar no planeta. Hoje ele é, sem dúvida, um influenciador da geopolítica mundial.
Apoiador de Donald Trump, foi recebido com ares de chefe de estado por Jair Bolsonaro, quando este era presidente, e que abriu caminho para seus satélites trazerem sinal e recolherem, de volta, informações preciosas sobre riquezas minerais do País.

Após a invasão da Ucrânia pela Rússia, fez uma proposta de paz para o conflito. Depois, com o argumento de não querer ser “cúmplice de ator de guerra”, impediu ucranianos de usarem seus satélites para atacar a Criméia. Opinou que Taiwan deveria ser entregue de volta à China. Como resposta, recebeu uma sola na medalhinha, dada pelo ministro das Relações Exteriores daquele país, Joseph Wu: “Avisamos Elon Musk que não estamos à venda”. Em 2020, acusado de colaboração em um golpe na Bolívia, tascou: “Daremos golpes contra quem quisermos. Lidem com isso!

Com Bolsonaro, Musk levou web para escolas e ganhou contratos (Crédito:Kenny Oliveira)

A tática de Musk é até simplória.
Em países onde não tem investimentos relevantes para seu tamanho, como o Brasil, usa poder, dinheiro e o X como megafone pessoal para atropelar legislações segundo seus interesses e conquistar a direita com a conversa fiada de que é amante de práticas democráticas e liberdade de expressão.
Mas, naqueles em que injeta grana pesada, esquece esse negócio de democracia.
No primeiro caso, é um tigrão nervoso.
No segundo, um gatinho manso.

Amigo de ditadores

E quem disse que o moço não gosta da companhia de um autoritário? Na China, onde produz mais da metade dos carros da Tesla, o X e todas as redes ocidentais são proibidas. Mas ele não toca no assunto com o amigo Xi Jinping, presidente do país, e muito menos no seu brinquedinho planetário de mensagens. Ao contrário do que faz por aqui, aceitou, sem se queixar do bloqueio de contas do X na Turquia do autoritário Tayyip Erdogan, há mais de 20 anos no poder, e na cada vez mais poderosa e promissora Índia.

Sobre irregularidades internas e externas promovidas pela Arábia Saudita do líder Mohamed Bin Salman e do príncipe Alwaleed Bin Talal Al Saud, que encaixou quase US$ 2 bilhões (R$ 11,29 bilhões) na sociedade do X e perdeu cerca de US$ 1,4 bilhão (R$ 7,9 bilhões) com a queda das ações, nem um pio. Bin Salman mandou matar e dissolver o corpo do jornalista Jamal Khashoggi, colunista do jornal The Washington Post, na embaixada saudita em Istambul, na Turquia? Esqueça isso. É Musk versão gatinho manso.

Bilionário baniu contas do X na Turquia do amigo Erdogan (Crédito:Divulgação)

Em seu voto, Moraes afirmou, em letras garrafais grifadas, que o empresário não poderia confundir “liberdade de expressão com inexistente liberdade de agressão”. Não é de agora que o ministro é atacado por Musk. Moraes sofre persistentes ataques do bilionário, que dia sim outro também posta ofensas, acusando o ministro de censor e ditador. Agora alinhou-se ao pastor Silas Malafaia, que está chamando a direita para o ato de 7 de setembro, onde promete reforçar a campanha irresponsável “pela prisão”do ministro.

Musk adora dizer que não tolera ataques à liberdade de expressão, mas não dá um pio sobre X proibido na China de Xi Jinping. Pudera: mais da metade dos carros da Tesla saem do país (Crédito:Fang Zhe)
(Divulgação)

O bilionário anda sempre com um pé em cada canoa. Ao mesmo tempo em que abre sua plataforma para a extrema direita recebe, como contrapartida, benesses oficiais. No governo Bolsonaro, criou um programa de internet em escolas nos rincões amazônicos, mas ganhou concessão para o grupo operar no País. Um dos contratos, o da Marinha, custa ao governo mais de R$ 428 mil ao ano. Por sinal, a ameaça das Forças Armadas e de outros clientes de suspender os contratos pesou na decisão da Starlink de bloquear o X.

Pontos da nova lei europeia são usados no processo contra Durov, dono do Telegram, na França (Crédito:Steve Jennings)

Apesar da suspensão desde sábado (31), pelo menos uma dezena de deputados e senadores continua usando clandestinamente a rede para atacar Moraes.
O Partido Novo força a barra para tentar emplacar pedido de impeachment do ministro.
O líder no Senado, Eduardo Girão (Novo- CE), pretende apresentar na segunda, 9, o “superpedido” de impeachment, que já foi rejeitado pelo presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

“O mais curioso é que quem vive apontando o dedo e dizendo que o Supremo faz ativismo judicial é quem obstruiu a tramitação de projetos de lei para regular a plataforma digital”, alfineta Orlando Silva, sem citar Hattem. Não era necessário. Ainda que o bilionário estique o período do X sem representante jurídico, Moraes não irá ceder. Assim, será possível constatar, ao final, se Musk dará fim a essa novela na pele do tigrão nervoso ou na do gatinho manso.

Governo americano quer banir o país a rede social chinesa TikTok, de Zhang Yiming (Crédito:cdsb / Imaginechina / Imaginechina via AFP)

Comissão de implosão
Lira escalou 15 deputados de direita e apenas cinco de esquerda para derreter relatório do PL das Fake News feito por Orlando Silva (PCdoB-SP)

Gustavo Gayer (PL-GO)
Filipe Barros (PL-PR)
Ana Paula Leão (PP-MG)
Fausto Pinato (PP-SP)
Júlio Lopes (PP-RJ)
Eli Borges (PL-TO)
Glaustin da Fokus (Podemos-GO)
Maurício Marcon (Podemos-RS)
Simone Marquetto (MDB-SP)
Márcio Marinho (Republicanos-BA)
Delegada Katarina (PSD-SE)
Áureo Ribeiro (Solidariedade-RJ)
Rodrigo Valadares (União-SE)
Marcel Van Hattem (Novo-RS)
Pedro Aihara (PRD-MG)
Orlando Silva (PCdoB-SP)
Jilmar Tatto (PT-SP)
Erika Hilton (PSOL-SP)
Afonso Motta (PDT-RS)
Lídice da Mata (PSB-BA)

Boicote em capítulos

8 ABRIL DE 2014
A presidente Dilma Roussef sanciona Lei 12.965, Marco Civil da Internet. Dez anos depois, ela permanece sem regulamentação

AGOSTO DE 2018
A Lei 13.709, ou Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), é sancionada pelo presidente Michel Temer

JUNHO DE 2020
O PL 2630, das Fake News, do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), é aprovado no Senado. Um mês depois, chega à Câmara. Orlando Silva (PCdoB-SP) assume a relatoria

ABRIL DE 2023
Após maratona de audiências, discussões, consultas e debates, Silva entrega o relatório. Texto é duramente combatido pela direita

ABRIL DE 2024
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), sucumbe à pressão, decide não submeter o projeto ao plenário e anuncia comissão de 20 deputados para elaborar novo relatório. Dois meses depois, divulga nomes: 15 da direita e cinco da esquerda. Três meses depois, colegiado sequer foi instalado. Nada de relevante foi produzido

As leis no mundo

ESTADOS UNIDOS
A abrangência da liberdade de expressão, a maior do mundo, impede adoção de legislação rígida. País aprovou a Seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações em 1996. Senado discutiu medidas de proteção de crianças, mas nada foi decidido. Temendo espionagem, EUA quer banir TikTok, de Zhang Yiming

ALEMANHA
Lei obriga redes sociais com mais de dois milhões de usuários a tirar do ar conteúdo falso em 24 horas

AUSTRÁLIA
Primeiro país a decidir que big techs devem remunerar editores pelo conteúdo reproduzido. Novo projeto exigirá que empresas combatam desinformação online

UNIÃO EUROPEIA
Aprovou a Lei de Serviços Digitais (DSA na sigla em inglês), mais avançado código de regulação do mundo. Meta é combater, entre vários temas, conteúdos ilegais, proteção infantil e segurança eleitoral. É utilizada na França como auxiliar nas acusações contra o fundador do Telegram, Pavel Durov