Cultura

Brasil ganha novas edições de mestres da literatura negra

Relançamentos de clássicos norte-americanos e brasileiros apresentam grandes autores às novas gerações e mostram que a discriminação racial, infelizmente, continua a existir

Crédito: Ulf Andersen

James Baldwin, autor de Da Próxima Vez, o Fogo: obra relançada no centenário de seu nascimento confirma o autor como um dos mais influentes do século 20 (Crédito: Ulf Andersen)

Por Felipe Machado

Publicar novas edições de clássicos literários é a melhor maneira de permitir que os leitores tenham acesso a obras que estariam condenadas ao esquecimento. Fazer isso com o cânone da literatura negra tem importância ainda maior: ajuda a criar uma sociedade mais inclusiva e com maior empatia. São textos que oferecem uma visão rica e diversificada da história e da cultura, uma mensagem que muitas vezes foi silenciada ou negligenciada. Esses mestres não apenas retratam as dificuldades enfrentadas por populações marginalizadas, mas celebram resistências e contribuem para a evolução social na tentativa de extirpar o preconceito.

Um dos mais importantes nomes desse movimento, Richard Wright, considerado o pai da literatura negra norte-americana, acaba de ter seu livro de estreia relançado no Brasil. Filho Nativo, de 1940, narra a história do jovem Bigger Thomas, de 20 anos. A cena de abertura é forte e metafórica: ele, a mãe e dois irmãos caçam um rato no minúsculo apartamento onde vivem, em Chicago. Bigger é contratado como motorista de uma família branca e rica, que atua numa organização humanitária que ajuda a comunidade negra. Uma noite, a filha do patrão, Mary, e o namorado, o convidam para jantar fora. Na volta para casa, um episódio nebuloso leva à morte da garota — a culpa recai sobre Bigger, que enfrenta um julgamento marcado pelo racismo e a intolerância.

Richard Wright, considerado o pai da literatura negra americana: Filho Nativo sai no Brasil após 57 anos fora de catálogo (Crédito:Divulgação)

Após o livro, Wright e a família sofreram tantas pressões que se mudaram para Paris. Lá ele conheceu o jovem intelectual James Baldwin, que se tornou seu protegido e, mais tarde, um dos mais influentes escritores e ativistas negros do século 20. Nascido no Harlem, em Nova York, em 1924, ele também tem seu livro mais famoso relançado no País. Da Próxima Vez, o Fogo, de 1964, traz dois textos independentes. No primeiro, em ocasião do centenário do fim da escravidão nos EUA, Baldwin escreveu uma carta ao seu sobrinho, um adolescente prestes a completar quinze anos, com suas reflexões sobre a questão racial. No segundo, o autor narra a experiência sobre religião e fé, inspirado pela presença da comunidade negra nas igrejas do Harlem.

Abdias Nascimento: ditadura tentou impedir sua presença em evento político na África (Crédito:Senado Federal)

Outro autor dessa geração que entrou para o panteão da luta contra a desigualdade racial foi o norte-americano Ralph Ellison. É autor de Homem Invisível, de 1952, também relançado recentemente no Brasil. Seu enredo, infelizmente, ainda é atual. Narra o assassinato de um estudante negro por um policial, estopim para protestos — é uma alusão à Revolta do Harlem, ocorrida em 1943, quando um militar matou um soldado negro.

Homem Invisível, de 1952, narra os protestos de uma comunidade após a morte de um estudante por um policial

Destaques do Brasil

Os autores brasileiros também vem sendo revisitados. Sitiado em Lagos, de Abdias Nascimento, ganha nova edição após 40 anos fora de catálogo. No livro, o autor denuncia a pressão diplomática contra sua participação no Festac 77, festival na Nigéria que celebrava a cultura africana. A ditadura tentou impedir que o ativista participasse do evento.
“A experiência pessoal do negro registra-se como um fenômeno sociocultural que abrange a inteira coletividade oprimida, vítima de diversas destituições de elementos básicos à sua sobrevivência como povo”, escreve, em um trecho.

Ralph Ellison, autor de Homem Invisível: obra inspirada na Revolta do Harlem, ocorrida em 1943, em Nova York. Na ocasião, um militar matou um colega que era negro (Crédito:Divulgação)

Carolina de Jesus, autora do famoso Quarto de Despejo, traduzido para 16 idiomas, sempre foi reconhecida apenas por seu texto memorialista. Um projeto de ampliação do olhar sobre seu trabalho incluiu o relançamento de duas obras: Casa de Alvenaria – Vol. 1: Osasco e Vol. 2: Santana, onde ela narra a complicada relação com o jornalista Audálio Dantas, que a descobriu, e O Escravo, romance sobre um casal que enfrenta pressões familiares para se separar. O projeto foi coordenado por Conceição Evaristo e Vera Eunice, filha da escritora.

Conceição Evaristo: seu novo livro, Macabéa: Flor de Mulungu, é inspirado no romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector (Crédito:Maria Ferreira)

A própria Conceição Evaristo é outra autora em destaque atualmente. Além de novas edições de seus livros mais conhecidos, Becos da Memória e Ponciá Vicêncio, ela lança o inédito Macabéa: Flor de Mulungu. Na obra ilustrada por Luciana Nabuco, Conceição cria uma nova história para personagem principal do romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Apesar de recém-lançada, tem tudo para se tornar mais um clássico.