A luta de Eunice Paiva contra a ditadura brasileira comove Veneza
No Festival de Veneza, o sucesso do filme Ainda Estou Aqui, que narra o drama de Eunice Paiva para elucidar o desaparecimento do marido, lembra ao mundo os horrores do regime militar no Brasil
Por Felipe Machado
A 81ª edição do Festival de Veneza, que termina neste sábado 7, foi palco de um dos momentos mais emocionantes da história recente do cinema brasileiro. Ainda Estou Aqui, novo filme do diretor Walter Salles, estreou sob uma forte salva de aplausos e foi ovacionado pela plateia durante dez minutos. A obra, que traz Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro no elenco, narra a saga de Eunice Paiva, uma mulher que, diante da tragédia pessoal e da repressão política, se transformou em símbolo da resistência e da luta pelos direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil.
Baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice, o filme é bem mais do que uma narrativa autobiográfica. É um retrato poderoso de uma época sombria da história brasileira que ecoa até os dias de hoje. O desaparecimento de Rubens Paiva, engenheiro, deputado federal e opositor do regime militar, marca o ponto de partida para a história de Eunice, interpretada brilhantemente por Fernanda Torres (quando jovem) e por Fernanda Montenegro (na maturidade). Em 20 de janeiro de 1971, Rubens foi levado de casa por agentes do regime e nunca mais retornou — seus restos foram jogados ao mar. Sua esposa, Eunice, passou a viver uma incessante busca pela verdade.
A produção de Ainda Estou Aqui não foi uma tarefa simples. Walter Salles e o roteirista Murilo Hauser levaram sete anos para adaptar o livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva para as telas. Conhecido por filmes como Central do Brasil e Diários de Motocicleta, Salles afirmou que a realidade no País havia voltado à mentalidade dos anos 1970. “Durante o período de filmagem, a vida no Brasil se aproximou perigosamente da distopia dos anos 1970, o que só tornou esta história ainda mais urgente”, disse, na coletiva do festival.
Falou ainda sobre a força de sua protagonista: “O que me emociona no livro é o fato de que é uma história extraordinária de uma família que resiste a um ato de violência e uma mulher se reencontrando em meio a isso. E eu me apaixonei por essa mulher. Eu a conheci. Mas o que Marcelo (Rubens Paiva) fez foi descobrir que sua mãe era de fato o coração desta família”.
Rubens e Eunice (Selton Mello e Fernanda Torres, ao alto): após o desaparecimento do marido, ela pressionou o regime militar por respostas. O diretor Walter Salles (acima): Brasil atual se aproxima da distopia dos anos 1970
Busca por justiça
O filme foi recebido em Veneza com intensas reações do público e da crítica.
• O Hollywood Reporter o classificou como “profundamente tocante”.
• A Variety destacou sua “radical empatia”.
• O site norte-americano Deadline o descreveu como uma “poderosa advertência da história”, mostrando sua relevância como um tributo, mas também em defesa dos direitos humanos no Brasil.
A atuação de Fernanda Torres também recebeu elogios. Descrita como uma “Mãe Coragem” pelo The Guardian, ela foi comparada à mãe, Fernanda Montenegro, que há 25 anos foi indicada ao Oscar por sua performance em Central do Brasil. O Deadline a colocou como uma forte candidata à temporada de premiações, o que inclui uma possível indicação ao Oscar.
Na coletiva, a atriz falou sobre o papel: “Eunice foi uma heroína. Encarou a tragédia evitando o melodrama. Não queria que seus filhos se tornassem vítimas da ditadura. E o jeito que ela encontrou para fazer isso foi ficar em silêncio e sorrir”.
A trajetória de Eunice Paiva não se restringe à busca por justiça. Após a prisão e o desaparecimento de Rubens Paiva, ela dedicou sua vida a exigir respostas do regime militar. Escreveu cartas ao presidente Emílio Garrastazu Médici, exigindo a verdade sobre o paradeiro de Rubens. As respostas, quando vinham, eram mentirosas e evasivas. Ora afirmavam que Rubens havia sido sequestrado, ora diziam que ele havia fugido para Cuba.
Após a morte do marido, ela formou-se em Direito e se tornou uma das líderes na pressão pela promulgação da lei que reconheceu oficialmente como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação em atividades políticas durante a ditadura. Mesmo após a emissão do atestado de óbito de Rubens, em 1996, Eunice continuou sua luta, que só terminou em 2012, quando a primeira prova concreta do assassinato foi encontrada — uma ficha que confirmava sua entrada em uma unidade do DOI-Codi.
O filme de Salles, portanto, não é apenas uma adaptação literária. É um testemunho da força de uma mulher que recusou a aceitar a pressão do regime. É uma celebração da resistência e da perseverança, o que nos lembra que, mesmo nas épocas mais sombrias, sempre há aqueles que se recusam a desistir.
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