Comportamento

Bets: jogatina bilionária on-line pede regulamentação que evite dano social

Desde 2018, quando foram legalizadas, as casas de apostas digitais vêm praticamente dobrando de volume e participação ano após ano. Em 2025, o mercado operará regularizado pela primeira vez, e é preciso que o País esteja preparado para as consequências

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A soma de todas as loterias federais, como Mega-Sena, Lotofácil, Quina e Lotomania, não chega a 20% das bets; ano passado arrecadaram R$ 23,4 bilhões versus R$ 120 bilhões das digitais (Crédito: Divulgação)

Por Luiz Cesar Pimentel

No ranking das torcidas esportivas brasileiras, o Corinthians, com seus 30,4 milhões de fanáticos, foi ultrapassado neste 2024 pelo grupo de aficionados que mais cresce desde 2018. Se a taxa de crescimento continuar a mesma curva ascendente dos últimos anos, em 2025 eles superarão o Flamengo, que possui 42 milhões de rubro-negros espalhados pelo País. São os apostadores esportivos brasileiros, em contingente que abrange 15% da população e movimentou R$ 120 bilhões em 2023, com estimativa de alcançar R$ 150 bi neste ano. O montante posiciona o Brasil em terceiro lugar no ranking global, atrás dos países com maior tradição nas casas de apostas, Estados Unidos e Inglaterra.

Mas, proporcionalmente, a somatória brasileira, equivalente a 1% do PIB nacional, ganha de longe do 0,4% que o mercado representa do produto interno norte-americano.

Os números superlativos ocultam problemas igualmente grandes.
Entre as famílias de apostadores de renda mais baixa, gastos com a modalidade representam 20% do orçamento discricionário (que inclui despesas não obrigatórias).
O percentual de apostadores cresce entre a fatia mais jovem, com um terço entre 16 e 24 anos que já apostaram ou o fazem.
Além de um contingente de viciados que ultrapassou a barreira do milhão de pessoas – os ludopatas são 1,07 milhão, com muitos casos de adolescentes e crianças compulsivos.

Para o bem e para o mal, a realidade é que todos possuímos um cassino nos bolsos no formato de aparelhos celulares. É impossível conter o tsunami das bets, mas é possível e obrigatório construir na regulamentação, pela qual o Brasil passa com atraso, o cenário menos destrutivo e mais vantajoso possível. Que sigam os jogos.

“Sempre existiram jogadores irresponsáveis, compulsivos e outros cautelosos. Hoje acontece um superdiagnóstico, o que dá a impressão de que as bets estão causando problemas de saúde pública e social, mas isso sempre aconteceu.”
Ricardo Santos, cientista de dados especialista em análise estatística para apostas

Os sites de apostas esportivas proliferam desde o final dos anos 1990. Com o impedimento legal do jogo no Brasil, os apostadores simplesmente recorriam ao planeta sem fronteiras da Internet e faziam suas bets com auxílio tecnológico.

Até que em 2018 o governo percebeu que perdia dinheiro com o mercado não regulamentado e determinou a legalização das apostas como uma modalidade lotérica, estipulando prazo de quatro anos para normatização efetiva.

Viu que o dinheiro que circulava pelas loterias oficiais, chamadas de Caixa, era cada vez menor em comparação aos jogos on-line e que estes não pagavam tributos no País a soma de todas as federais, como Mega-Sena, Lotofácil, Quina e Lotomania, não chega a 20% das bets; ano passado arrecadaram R$ 23,4 bilhões versus R$ 120 bilhões das digitais.

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O limite para que saísse a regulamentação, com definição de tributação, instalação de sedes e pagamento de licença para operarem no Brasil, acabou com o final do governo Bolsonaro. Só que este sentou durante quatro anos sobre o assunto e o debate foi resgatado no mandato de Lula.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, olhou o ranking das casas de apostas e viu que sete entre as 10 maiores tinham como sede de operação o paraíso tanto fiscal quanto de beleza cênica de Curaçao; as outras três tinham endereço principal em Malta, e estipulou que caso quisessem dar seguimento nos negócios por aqui deveriam pagar outorga de R$ 30 milhões para operarem por cinco anos, além de alíquota sobre a receita bruta de jogos de 12%, cabendo aos apostadores o recolhimento de 15% sobre os prêmios (acima de R$ 2,2 mil) como Imposto de Renda. Na conta de Haddad, isso sugere algo como uns R$ 3 bilhões anuais.

Mesmo com a mordida governamental, as bets continuam sendo um baita negócio.
Análises apontam que após a distribuição de prêmios, as casas ficam com 13% do que é arrecadado.
Em valores concretos, significou um lucro de R$ 15,6 bilhões no ano passado.
 Se considerar que o segmento cresceu 360% no Brasil entre 2020 e 2022, segundo a plataforma de análise Datahub, e que em 2023 o País liderou globalmente o acesso a sites do tipo, com 14 bilhões de entradas, o mercado torna-se ainda mais promissor.

“O impacto da regulamentação tende a ser mais positivo do que negativo. As apostas envolvem considerável habilidade em análise de risco versus prêmio pelo jogador. Já os jogos de cassino, esses ainda não estão regulamentados e são categoria que considero bem perigosa”, diz Ricardo Santos, cientista de dados especialista em análise estatística para apostas.

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Outra perspectiva da situação é o prejuízo que vêm sofrendo duas parcelas da população mais vulneráveis financeiramente, jovens e famílias de baixa renda. Estudo da XP mostra que residências com rendimento considerado baixo e que abrigam apostadores têm 22% do orçamento mensal não obrigatório (como luz, água) comprometido por palpites esportivos. Já os jovens entraram de cabeça na jogatina, mesmo com o impedimento legal até os 18 anos, e um terço deles assume interesse no que consideram investimento.

US$ 352 bi ou R$1,93 trilhão é quanto as bets deverão movimentar no mundo em 2031 Fonte: Data Bridge Market Research

Para ter se tornado tão popular entre os anos de 2020 e 22, temos a pandemia e a maior permanência residencial das pessoas para explicar. Já para estar se tornando uma epidemia global e cativando até mais jovens, há uma explicação científica. Com o mundo cada vez mais virtual e gamificado (ou seja, tudo mais próximo de jogos, games) a linha que separa a percepção do risco efetivo para o teórico torna-se mais tênue.

Outra onda de estímulo foi o Pix, que cativou o brasileiro a partir de 2021 e é o método preferido por 9 a cada 10 apostadores. Isso tudo além de o mecanismo de recompensa ser o mesmo dos games – o prazer da liberação de dopamina no cérebro, com o agravante de o mesmo neurotransmissor conferir falsa impressão de superpoder, coragem e alimentar a compulsão.

O mundo das bets em números

As BETs movimentaram R$ 120 bilhões em 2023 no País, calculam técnicos da XP Investimentos

De acordo com a empresa de jogos online britânica Entain, as apostas de todos os tipos geraram US$ 1,5 bilhão (R$ 8,43 bilhões) de receita bruta no Brasil em 2022, a décima do mundo

O tempo médio gasto no consumo de jogos cresceu 281% no País desde 2019, segundo o Comscore

“O frenesi do jogo é muito semelhante à tempestade de dopamina provocada pela cocaína, e tem um mecanismo fisiopatológico parecido àquele encontrado no uso de drogas, que promove um pico e o indivíduo depois fica perseguindo esse estado permanentemente”, diz Marcos Gebara, presidente da Associação Psiquiátrica do Rio de Janeiro. “Fora que ansiedade e depressão podem decorrer da frustração das perdas, uma vez que a pessoa vai sendo massacrada na perseguição da recuperação do prejuízo.”

Apostas privilegiam esportes e invadem outras áreas e nichos (Crédito:Amaury Cornu)

“Assim como ocorre com o abuso de álcool, cafeína, nicotina, dentre outras substâncias, o cérebro de uma pessoa que abusa do uso das apostas pode desenvolver uma tolerância. Isso significa que a pessoa sentirá necessidade de apostar cada vez mais para alcançar o mesmo nível de prazer que obtinha anteriormente”, alerta a psicóloga Marcelle Alfinito.

Estatística de doença

A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a ludopatia, vício em jogos, desde 2018 como patologia. Quanto mais praticantes, mais se tornam viciados, sendo que o departamento de Psiquiatria da USP estima que o País tenha dois milhões nessa condição.

Uma das características observadas, além da predominância jovem, é a confusão entre perigo real e imaginário, pois grande parte dos jogadores compulsivos acabam intercalando apostas com investimentos de alto risco no mercado financeiro ou compra e venda de criptomoedas, na mira da promessa de ganhos superlativos.

O diagnóstico patológico é mais complicado, pois se a dependência em álcool ou drogas apresenta sintomas físicos claros, o ludopata consegue esconder os sinais mais facilmente, até de si mesmo.

“A patologia envolve varias atividades como pessoas que tem comportamento compulsivo com sexo, entorpecentes, álcool, compras, cafeína, cigarro, comida…Existe um longo espectro de atividades que geram comportamento compulsivo. O jogo também gera”, defende Magnho José, presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal.

As casas de apostas praticamente dobraram em quantidade nos anos seguintes à legalização.
Em 2019 foram abertas 40, um ano depois, 51, pulando para 116 novas em 2021, 221 em 2022 e 239 no ano passado.
Situação parecida vivem os EUA, desde que 38 estados legalizaram as bets após decisão da Suprema Corte, em 2018.

Estudo das californianas UCLA e UC San Diego apresenta resultados preocupantes para o brasileiro, já que o perfil e o comportamento do apostador lá são parecidos com os daqui.
A maioria de homens abaixo dos 40 anos, residentes em áreas de menor renda per capita, fizeram com que o score de crédito das regiões onde a aposta é legal caísse 0,3% por conta de excesso de endividamentos.
Além disso, 43% dos jogadores gastam mais de 1% de sua renda mensal em jogos, sendo que 96% dos jogadores perdem dinheiro, com apenas 4% lucrando.

“A saúde financeira dos consumidores está se deteriorando. Constatamos um aumento substancial nas taxas de falência, cobranças de dívidas, empréstimos para consolidação de dívidas e inadimplência de empréstimos para automóveis”, conclui o estudo As Consequências Financeiras das Apostas Esportivas Legalizadas.

Em mercado que ficou abarrotado de players, as bets começaram um leilão pelos espaços premium de interesse — as camisas dos times de futebol, já que a modalidade responde por quase 80% das apostas esportivas. A situação atingiu neste ano nível de extravagância em que 19 dos 20 times que disputam a Série A do Campeonato Brasileiro são patrocinados por casas com bet no nome. A única exceção é o Cuiabá, que até chegou a ter patrocínio da Luckbet, mas não mais. Aliás, o nome do torneio atual foi adquirido e passou a ser Brasileirão Betano 2024. O investimento nos times acompanhou o interesse crescente e aumentou 66% sobre o ano passado, em total de R$ 555 milhões.

Uma vez que as apostas esportivas pegaram assento no bonde das loterias, o que elas têm feito é se distanciarem dos chamados “jogos de azar”, considerados desde 1941 contravenções penais. É um grupo no qual estão cassinos on-line, jogo do bicho e modalidades que ficaram extremamente populares no País, como os jogos do aviãozinho (crash) e do tigrinho (slots).
Apesar de ambos viverem de apostas, o verniz que os diferencia, segundo as bets, é que nas apostas esportivas existe a transparência de acompanhar o resultado para saber se ganhou ou perdeu, enquanto nos citados, um algoritmo calibrado sabe-se lá como determina quando o aviãozinho vai cair ou quando o caça-níqueis do tigre irá beneficiar o jogador.
Além disso, foi estipulado em 2018 que deve estar claro o lucro do apostador no momento do investimento, qualificando a bet como de quota fixa.

O interesse no distanciamento vem também de uma ética própria das casas de aposta que tentam respeitar certas vulnerabilidades. Exemplo prático foi a proliferação de propagandas de cassinos online em perfis de menores de idade nas redes sociais, especialmente Instagram e TikTok. Crianças de seis e sete anos chegaram a ser contratadas para promoverem o jogo do tigrinho. O resultado não poderia ser pior.

O Instituto Alana, que atua na defesa infanto-juvenil, denunciou o caso de adolescente maranhense de 17 anos que se suicidou ao perder R$ 50 mil no caça-níqueis do tigre. A ONG diz ter denunciado perfis infantis que carregavam publicidade do tipo, mas que a resposta da plataforma foi negativa por estarem conforme as “diretrizes da comunidade, que não permite menores de 13 anos, salvo em casos de contas gerenciadas por um responsável”.

“É essencial criar ações de política pública para psicoeducar os pais. Conscientizá-los para vícios diante de uma educação infantil que não vê a criança enquanto sujeito ainda”, diz a psicóloga Marcelle Alfinito.

Prisão de celebridades

O contágio das bets chegou ao ponto de propagação que o Exército brasileiro criou uma cartilha e um programa de palestras de conscientização chamado Prevenção ao Vício de Apostas.
A Força Aérea não ficou para trás e incluiu no Programa de Educação Financeira (PEF), que ministra aos cadetes, os gastos em jogos online.
Já a Marinha diz trabalhar com iniciativas de prevenção pelo Departamento de Assistência Social da força.

E já deram um jeitinho de se infiltrar em outras áreas.

A SuperBet Brasil abriu mercado para apostas nas eleições de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e Florianópolis.

Na Sportingbet os palpites estão abertos para a capital paulista.

Nos assuntos da semana, a influenciadora Deolane Barbosa foi presa em operação contra organização suspeita de lavagem de dinheiro e prática de jogos ilegais. Ela justificou ganhos como pagamentos por contratos de publicidade da bet Esportes da Sorte.

Na mesma ação, foi apreendido avião que pertence a empresa do cantor Gusttavo Lima. Ele se encontra na Grécia, em um iate onde recebeu como convidado o ministro do STF Kassio Nunes Marques, que viajou para a Europa em jatinho do empresário Fernando Oliveira Lima, conhecido como Fernandin OIG, CEO do One Internet Game. Prova de que no País tudo acaba em aposta.