Comportamento

Conheça os tutores comunitários de cachorros e felinos que vivem pelas ruas

Com 30 milhões de animais abandonados no País e poucas organizações e adotantes disponíveis, grupos de apaixonados pela causa se formam para cuidar dos bichos que vivem nas ruas, condomínios, empresas e garagens de edifícios

Crédito: Rogerio Cassimiro

Luci Orkov, Ruth Goldmann, Claude Salmona, Luciana Lettiére (Negrito no colo), Fernanda Carvalho e Flora Veronesi são voluntárias (Crédito: Rogerio Cassimiro)

Por Luiz Cesar Pimentel

A conta animal não fecha no Brasil. São estimados 30 milhões de abandonados, entre 20 milhões de cães e 10 milhões de gatos, e 400 Organizações Não Governamentais de proteção à causa. As ONGs tutelam 184 mil bichos, e parte (sortuda) do restante está sendo cuidada pelos voluntários apaixonados, os tutores de animais comunitários, conforme definições própria e legal. São os grupos que se formam, cada vez em mais ampla presença, em torno de cachorros e felinos que vivem pelas ruas, principalmente em condomínios, empresas e garagens de edifícios.

Em comum, além da dedicação ao trato, eles possuem antipatia aos termos “dono” e “pet”, pois fomenta a cultura do animal como um objeto a ser possuído. Preferem ser conhecidos como tutores e dividem em grupos os objetos da afeição:
• domiciliados, que estão em constante supervisão, mesmo quando vão à rua;
os semi-domiciliados, com tutor, casa onde habitam, mas que têm acesso à rua sem supervisão,
e os comunitários, que vivem pelas ruas, mas com laços com membros da comunidade do local em que habitam.

Dos 30 milhões de animais abandonados no País, 20 milhões são cachorros (Crédito:Divulgação )

O movimento ainda não foi contabilizado em tamanho, mas cresce tanto que ganhou legislação específica, além de estar sendo debatido em âmbito federal.

O primeiro estado a reconhecer o conceito de animal comunitário foi São Paulo, em 2008, por lei que trata sobre o controle da reprodução de cães e gatos, proíbe a eutanásia e cunha o termo comunitário ao animal criado por diferentes pessoas que tenham vínculos de afeto e dependência e que se dispõem voluntariamente.

Luigi é um dos nove gatos que foi acolhido pelo grupo de tutoras em clube da região central de São Paulo (Crédito:Divulgação )

Foi o que aconteceu na sede de tradicional clube no centro de São Paulo, o SPAC. Quatro associadas voluntárias nos cuidados a alguns gatos que viviam no clube se aproximaram. A atenção aos animais atraiu mais amantes da causa felina e hoje são 18 sócios que cuidam da higiene, saúde, alimentação, vacinação e castração de nove gatos, além de zelarem pela limpeza do local onde eles ficam. “Nós consultamos uma advogada para definir o contorno jurídico do trabalho, pois sempre há aqueles que se opõem, que dizem que os animais vão sujar, transmitir doenças, essas coisas. E é justamente o contrário — o manejo do animal comunitário, alinhado com o conceito de saúde única, promove uma abordagem sustentável que integra de forma saudável as pessoas, animais e ecossistemas, incentivando uma atuação cidadã”, diz uma das tutoras, Claude Salmona, que realiza a ação desde 2000.

“Todos os gastos são realizados exclusivamente com contribuições de voluntários, assim como de simpatizantes. Nossa missão é proteger os gatos comunitários e arredores de qualquer ameaça ou barreira ao seu bem-estar e garantir seu status de animal protegido por Lei”, completa Luciana Lettière.

Nem seria preciso tanto cuidado jurídico, já que atualmente outros 13 estados, além do Distrito Federal, reconhecem os direitos dos comunitários. Três projetos de lei sobre o tema seguem em trâmite para tentar garantir direitos federais à proteção. E desde 1998 o abandono é considerado crime, sendo que em 2020 as penalidades aumentaram para casos de maus-tratos com multa, proibição de guarda e reclusão de dois a cinco anos.

(Divulgação)

“Todas as formas de vida no planeta são interdependentes.”
Deborah Lambach, advogada animalista

Aspecto Legal

Traumatizada, como a toda uma geração que cresceu com o conceito de “carrocinha” e captura de abandonados para “virarem sabão”, a advogada Deborah Lambach foi cursar pós-graduação em Direito Animal pela Universidade de Lisboa. “No Brasil, a interpretação é a de que os animais são bens móveis (semoventes), havendo uma funcionalização desses seres”, diz. “O bem-estar animal é questão social e de políticas públicas que deveria mobilizar a sociedade civil e o Estado em rede”, completa a pesquisadora do Grupo Zoopolis, da UFPR.

A bancada de Deborah tem o reforço de Rogério Rammê, doutor em Direito e advogado animalista. Ele atuava como jurista ambientalista até que em 2010 se convenceu de que “a luta pelos direitos animais não era apenas necessária, mas talvez a mais urgente e marginalizada de todas”. “Devemos lutar pelos direitos dos comunitários, pois o abandono é decorrente da ação humana e da omissão estatal. Ou seja, somos todos responsáveis pelo problema e pela solução.”

A quantidade de animais de companhia domiciliados no País é de cerca de 150 milhões — estão presentes em 50% dos lares brasileiros. Com a conscientização e controle populacional estabelecido pelos grupos de defesa e tutores de animais comunitários, os 30 milhões que vagam pelas ruas tendem a diminuir nos próximos anos. Enquanto isso, voluntários exercem a função heróica, seguindo a máxima do poeta Carlos Drummond de Andrade, de que “amar os animais é uma espécie de ensaio geral para nos amarmos uns aos outros”.