Cultura

“Eu sei bem o que é pior do que a democracia”, diz Paula Toller

Crédito: Pedro Loreto

Aos 62 anos e 41 de carreira, cantora projeta trabalhos futuros e celebra passado (Crédito: Pedro Loreto)

Por Luiz Cesar Pimentel

Uma das pesquisas de Google mais utilizadas sobre Paula Toller é a respeito de seu segredo de juventude. A curiosidade torna-se ainda mais pertinente com a cantora e compositora a nos recordar que completa 41 anos de carreira com a turnê Amorosa, que mistura seu sobrenome (Amora) com disco que a encantou recentemente, Amoroso, de João Gilberto. No giro pelo Brasil, ela inclui sucessos de todas as fases da carreira, desde o primeiro, em 1983, Pintura Íntima, que levou o grupo que liderava, Kid Abelha e os Abóboras Selvagens, aos primeiros lugares das paradas, até canções dos anos 2020. Na conversa com a ISTOÉ, Paula relembra o início durante a ditadura militar, a influência de Rita Lee em sua obra e vida, o valor que dá à família, sempre presente em seus trabalhos, e de certo modo mata a curiosidade do público com um de seus assuntos favoritos, a saúde.

Vocês começaram durante o período de ditadura militar. Recentemente, você foi vítima de fake news tanto da esquerda quanto da direita. Como você trata a política na sua carreira?
Uma coisa é posicionamento político e outra é atuação política. Eu venho da geração que pegou um finalzinho da censura. Por incrível que pareça, tem duas músicas do Kid Abelha que foram censuradas, bem no comecinho. Eu queria conquistar o mundo e queria a democracia também. Nunca tinha votado, passamos por tudo aquilo, então não desperdiço voto. Porém, não acho que seja uma obrigação do artista ficar defendendo candidatos. Ter posicionamento social é uma coisa e outra é ficar de tiete de candidato. Jamais fui, e cada vez tem menos gente que admiro na política. Eu não falo sobre política, porque me parece algo para simplificar suas ideias, além dessa coisa muito triste que é a polarização que vivemos. Falta conversa, falta diálogo, todo mundo está falando sozinho. A impressão que dá é que a democracia não é mais importante. Eu não sei o que existe melhor do que a democracia, mas pior eu sei muito bem. Eu me posiciono, voto, mas não fico fazendo campanha. Não acredito nisso, meus ídolos são todos artistas, escritores, cantores e compositores.

Você falou que teve duas músicas censuradas nos anos 1980. Lembra quais foram e por quê?
Só me lembro do título de uma delas, que era ‘Oh Sarah’. Na censura diziam que fazia “alusão a drogas”. Era indireta; não tinha nenhuma alusão. A outra falava sobre suicídio. Eu imagino que tenha sido um problema, digamos, religioso para isso. Foram essas situações bizarras que ainda pegamos, porque as leis demoraram a mudar mesmo depois da abertura política.

O protagonismo feminino em bandas é algo mais recente e ninguém melhor do que você para falar a respeito. Você acha que esse caminho é mais suave hoje?
O grande exemplo de protagonismo feminino para mim é a Rita Lee, desde os Mutantes e do disco Fruto Proibido. Eu escutava os álbuns dela sozinha em casa no volume máximo, conheço de cor. Por conta de não ser careta, me identificava muito com ela. Quando fui cantar, não queria ser aquela de vestido longo, cabelo alto, parada com a orquestra atrás. Eu queria a molecagem do rock, aquela agressividade musical. A Rita foi o modelo que mostrou que eu não precisava ser igual a todo mundo. Quando começamos, ela era a única mulher que estava ali na frente. Isso hoje em dia é muito mais normal e as pessoas já se acostumaram. Porque realmente tinha aquela coisa machista, até porque é difícil ir para a estrada sendo mulher. Na época, ficávamos em hotel de posto de gasolina mesmo em primeiro lugar no Brasil. Aos poucos fui colocando muitas mulheres para trabalhar comigo. Hoje em dia tem empresária, assistente, mais mulheres nos bastidores, é mais tranquilo. A Fernanda (Abreu) e eu fomos pioneiras naquela época.

É por isso que você considera a Rita Lee sua fada madrinha? Por ter mostrado que era possível um caminho de igual para igual dentro do rock?
Sim, primeiro ela foi uma enorme inspiração. Depois que comecei a fazer música, formei banda e fui para a estrada, eu a conheci no camarim de um show do Lulu Santos, que também estava começando. Fomos cumprimentá-la e eu fiquei muito nervosa. Depois ela me convidou várias vezes para ir na sua casa, em shows, me chamou para fazer o Acústico MTV em 95. Quando ia assistir aos shows dela e a produção via que eu estava na plateia, me ligavam chamando para cantar junto e eu sempre concordava. Comecei a ter um convívio com ela que nunca imaginei. Imagina seu ídolo te chamar para cantar junto. Ela foi muito importante para me dar confiança, ia para as entrevistas e me elogiava, falava que me admirava. Ela foi importante em todos os sentidos. As conversas com a Rita eram muito boas porque ela ia direto ao ponto e falava dos problemas dela e eu falava dos meus. Faz muita falta conversar com ela.

Em relação a outros comportamentos opressores, como por exemplo o etarismo, você acredita que ainda permanecem na música?
Paul McCartney tem mais de 80, assim como o Roberto Carlos. Eles são da geração que inspirou a minha e estão muito bem. Estão criativos, ativos. Eu espero chegar nessa idade dessa forma. Não gosto de reclamar, nunca fui de reclamar. Se fosse um problema, me posicionava como se fosse um menino, pois só queria estar lá, participar. Não queria ficar na arquibancada assistindo — eu batalhei e consegui. Nunca imaginei que ia chegar aqui, turnê de 40 anos, mas acho que você rejuvenesce muito com a música. O palco não tem idade.

A sua trajetória têm muitas ligações familiares: seu marido dirigiu clipes, ajuda a compor, seu filho dirigiu o audiovisual. E atualmente você vai ser avó. Qual é a importância da família na sua carreira?
A nossa casa é uma usina de criação. O Gabriel (Farias, filho) cresceu ouvindo e fazendo música, indo para a estrada. O Lui (Farias, marido) é de uma família de cinema, muito tradicional. Minha família não tinha nenhum artista, mas a gente sempre gostou muito de arte, literatura e música. Eu e o Lui sempre caminhamos juntos — ele é meu parceiro em letras, fez muitos clipes, fez o meu DVD Nosso. O Gabriel foi estudar cinema e virou essa coisa de a gente trabalhar juntos. Eu sou muito família, sempre cantamos juntos, em casa todo mundo canta bem. E agora achei que estava na hora de embarcarmos em um projeto grande e que o Gabriel estava pronto, que eu ia conseguir ser patroa e não apenas mãe.

“A Rita (Lee) foi importante em todos os sentidos. Foi uma influência musical e depois uma amiga próxima. Faz muita falta conversar com ela” (Crédito:Cica Nede)

Acredita que se o Kid Abelha não tivesse feito sucesso logo no começo, você seria uma boa designer?
O que eu aproveitei bem da faculdade foi justamente estudar a história da arte, fotografia, aprender a ver. Não, eu não seria uma boa designer, mas sei ver e isso me ajuda muito. Eu estava na faculdade ao mesmo tempo em que a banda estava começando. Só que no final do curso já estava viajando toda semana pelo Brasil. O sucesso cedo e eu ter descoberto logo o que queria fazer foi muito importante. Tenho a sorte de ter percebido precocemente quais eram a minha a minha vocação e talento. Eu cantava em todo canto, na escola, igreja, corredor do meu prédio. Onde tinha música, eu estava lá cantando.

Você cultiva imagem muito saudável, tinha um time de futebol (Rebola), joga tênis e, quando teve o diagnóstico de diabetes, tornou-se uma voz importante sobre saúde. Como é sua relação com o tema?
Eu prezo pela saúde mesmo antes da diabetes, cuido do corpo, da voz, não tanto da beleza. Realmente, fui pega de surpresa por esse diagnóstico em 2009, mas tive muito apoio de amigos, principalmente do Dado Villa-Lobos, que me ajudou a perceber que eu tinha que falar sobre isso. Temos pouca informação sobre diabetes. Sou bastante ativa em vários projetos, também de ajuda direta. Tenho diabetes há quinze anos e sem sequelas, mas é preciso muita disciplina. É uma montanha russa ter a disciplina necessária, ainda mais para mim, que vivo na estrada. Como sou chegada a uma disciplina própria, consigo enfrentar e viver uma vida praticamente normal.

“Quando convidei a Luisa (Sonza), ela falou: ‘Minha mãe é sua fã desde os anos 80, eu cresci ouvindo as suas músicas; além de gostar de você” (Crédito:Ettore Chiereguini)

Turnês celebratórias costumam remeter a reaproveitamento de repertório antigo. Como você trabalha isso nesse show de 40 anos, Amorosa?
Essas são as minhas músicas, tem canções dos anos 80, 90, 2000, 2010 e 2020. De todas as décadas e mesmo sendo uma comemoração de carreira, tem lados B. É uma vontade de comemorar com o público a minha trajetória. Eu tenho as minhas músicas, sou da minha geração e tenho um enorme prazer em estar fazendo essa comemoração e vendo gente nova chegar, principalmente por meio das redes sociais. Na internet vejo gente com ouvidos frescos escutando minhas músicas, adolescentes tocando no violão e piano ‘Amanhã é 23’, ‘Como eu quero’, ‘Nada por mim’. Felizmente, eu tenho uma carreira longa porque comecei a fazer sucesso cedo. Isso me deu moral para fazer as coisas sem muitas concessões, à moda de cada momento.

As participações também vão de A a Z, de Roberto Menescal a Luisa Sonza, passando por Liminha e Fernanda Abreu. Por que essa amplitude de convidados?
Os convidados são de gerações diferentes: Menescal, muito antes de mim, com a bossa nova; a Fernanda é contemporânea e uma das primeiras artistas que também teve controle total da criação; e a Luísa Sonza, que é a estrela do momento, já mostrou que veio para brigar pelos primeiros lugares. Todos esses artistas, além de minha admiração, têm uma ligação afetiva e pessoal com a minha música. Menescal era diretor de gravadora quando a Marina Lima gravou ‘Nada por mim’ e ele foi um dos caras que batalhou para lançá-la como música de trabalho. A Fernanda já dirigiu o show do Kid Abelha nos anos 90 e é amiga próxima. Com a Luísa, estávamos no Altas horas e ela disse que era muito minha fã. Fiquei impressionada com ela cantando e liguei: “Luísa, vou fazer um audiovisual comemorativo, você topa cantar comigo?”. Ela falou: “Minha mãe é sua fã desde os anos 80, eu cresci ouvindo as suas músicas. Então, além de eu gostar de você, quero também homenagear a minha mãe”. Todas essas pessoas têm uma razão para estar onde estão.

Ao ver no palco tudo o que produziu em sua carreira, você consegue viver o momento ou já está pensando no próximo passo?
Eu sempre fui 100% o momento. Estamos com o embrião desse show, o Liminha e eu, principalmente, há quase dez anos. Depois veio o Rodrigo Suricato, começamos a fazer arranjos novos para músicas já muito conhecidas e fomos aumentando a banda. Durante a pandemia, eu meio que fiquei pendurada no disco Amoroso, do João Gilberto. Ao ver o universo da música perdido e tudo parado, me deu um clique: meu nome é Paula Toller Amora e juntei o Amoroso com Amora, foi potencializando e cheguei a Amorosa. Eu tinha virado uma pessoa melhor, mais tranquila e mais aberta a ter as pessoas em volta de mim. O Liminha foi produtor dos primeiros discos do Kid e ficamos sem ter contato por bastante tempo. Fizemos um disco juntos (Transbordada) e ele começou a ir para a estrada comigo e agora tenho um mutante na minha banda. Então aproveito o momento por toda essa história envolvida, toda essa beleza.