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O que as queimadas em SP, Pantanal e Amazônia revelam sobre clima e crimes

Crédito: Cristiano Mariz

Brasília coberta por fumaça: junção de tempo seco e incêndios (Crédito: Cristiano Mariz)

Por Luiz Cesar Pimentel

RESUMO

• 2024 já registra aumento de 80% em incêndios sobre o ano passado
• Agosto explode como o mês mais chamuscado ao queimar São Paulo depois de consumir o Pantanal e a Amazônia
• Especialistas admitem que clima seco possa ter ajudado, mas veem participação humana na tragédia
• Legislação permissiva dá guarida a crimes ambientais

O Estado de São Paulo, um dos dez atingidos pelas nuvens de fumaça e fuligem originárias da Amazônia na penúltima semana de agosto, comemorava a chegada de uma frente fria na sexta-feira, 23. Os ventos traziam a promessa de limpeza do ar e de baixa de 12ºC nos termômetros, que superavam os 30ºC. O satélite do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) captava imagens a cada dez minutos quando registrou a movimentação suspeita de colunas de fumaça às 10h30 da manhã. Em um intervalo de 90 minutos, até o meio-dia, o número de focos de calor pulou de 25 para 1.886 no Estado, superando a soma de toda a Amazônia. Uma competição insalubre, que coroa negativamente aquele que já é um dos piores anos da série histórica de registros de incêndios para reaproveitamento ganancioso da terra no País.

A pirotecnia orquestrada ainda não pode ser catalogada no livro de vergonhas brasileiras como ação criminosa, mas todos os indícios apontam para isso.
Mais de metade dos focos aconteceu em canaviais, 20% em pastagens e 17% em lavouras.
Quase quatro mil propriedades rurais foram atingidas em 144 municípios, sendo que 48 entraram em estado de alerta máximo.
São Paulo tem o agosto com mais incêndios registrados e sete vezes mais do que no mesmo mês em 2023.

Por isso especialistas não têm receio em apontar: “50 municípios tiveram incêndios iniciados ao mesmo tempo. Então, 99,9% deles foram causados pela ação humana”, afirmou o Secretário Nacional da Defesa Civil, Wolnei Wolff. “Não é natural tantos focos num curto período. É como se fosse um Dia do Fogo exclusivo para São Paulo”, completou Ane Alencar, diretora de Ciência do IPAM e coordenadora do MapBiomas Fogo.

(Divulgação)

Com a analogia, Alencar crava o dia 23 último na infame relação de datas de ataque massivo à natureza, como no 10 de agosto de 2019, quando 1.457 focos de incêndio na região amazônica batizaram a investida como Dia do Fogo. À ocasião, grileiros e fazendeiros organizaram a queimada simultânea tanto para prepararem a terra para pecuária e agricultura quanto como demonstração de força superior à fiscalização ambiental, chefiada pelo ministro do Meio Ambiente e do “mudar o regramento e passar a boiada”, Ricardo Salles.

“Acompanho imagens de satélite diariamente e poucas vezes vi o Brasil coberto dessa maneira por fumaça. É altamente improvável que o fogo tenha sido provocado por causas naturais. Não detectamos raio, descarga elétrica, nada do tipo”, diz Marcelo Seluchi, climatologista do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). “O fogo ainda é uma ferramenta importante na agropecuária brasileira. Grande parte das pastagens no Brasil tem seu capim renovado dessa forma, assim como as queimadas são a principal forma de transformação da biomassa derrubada pelo desmatamento, facilitando a conversão da floresta em áreas de cultivo ou pastagem”, completa Ane Alencar.

(Divulgação)

Não é coincidência, porém, que os dois dias de ação aconteceram em agosto.
O fogo no Brasil está relacionado tanto ao “preparo” da terra quanto ao período tradicionalmente mais seco, entre julho e outubro — 80% das queimadas acontecem durante esses quatro meses.
Só que 2024 representa um perigo adicional à equação, pois o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) apontou que nunca havia sido registrada seca tão longa no centro do País.
Mais de metade do território brasileiro enfrenta a pior estiagem em 44 anos. Dos 5.570 municípios nacionais, 3.850 (70%) passam por alguma classificação de seca. A previsão só melhora no fim de setembro.

Não à toa, os números de focos de queimada são inéditos em São Paulo. Também apresentam a maior taxa dos últimos 13 anos em Minas Gerais, assim como aumento de 260% sobre 2023 no Mato Grosso e o dobro no mesmo período que o ano passado no Cerrado. Se o recorte de observação captar os paraísos naturais do Pantanal e da Amazônia no ano, o retrato fica ainda mais triste.

“Diria que 95% são associados à ação humana. Talvez a fiscalização não seja suficiente. Antigamente, era ferramenta para preparar o campo para nova safra, só que as condições climáticas atuais, mais quentes e secas, fazem com que se perca o controle mesmo que não tenha sido a intenção”, diz o coordenador geral de pesquisas do Cemaden, José Marengo.

Pantanal uma das áreas mais úmidas do planeta, foi consumido pelo fogo, assim como a residência às margens da BR-330 (abaixo) em Ribeirão Preto, interior do Estado de São Paulo (Crédito:Gabriel Figueiroa/SOS pantanal)

Naquela que é considerada uma das maiores áreas úmidas contínuas da Terra, o Pantanal, o aumento comparativo no mesmo período foi de 3.316% — 110 focos em agosto de 2023 contra 3.758 nos primeiros 25 dias do ano corrente.

Já na Amazônia, onde a temporada de derrubada acontece o ano inteiro como preparação para a queima entre julho e outubro, o INPE anotou mais de 50 mil focos desde o início do ano.

O problema se alastra por todo o País, já que as condições geográficas criam um corredor de fumaça resultante da queima que viaja pelo Brasil.

Em 2019, uma nuvem de fuligem do primeiro Dia do Fogo escureceu o céu no meio da tarde em São Paulo, com chuva cinza e odor de incêndio. Na semana do dia 23, antes do fogaréu paulista, as nuvens de rios de fumaça mudaram a coloração da Lua e do Sol, além do horizonte, em diversas partes do Brasil, para tons entre laranja e vermelho.

Impunidade impera

Se e quando for confirmada a origem criminosa dos incêndios, que consumiram boa parte das lavouras e matas de São Paulo, as causas podem variar. Do confronto às regras ambientais, do recado político às razões econômicas, uma coisa é certa: o principal estímulo para que sigam acontecendo é a impunidade com que ações do tipo são tratadas. No extremo, os causadores conseguem se beneficiar duas vezes.

O Greenpeace Brasil publicou nesse mês um documento sobre a primeira grande queimada proposital em 2019.
A entidade analisou as 478 propriedades que tiveram focos de incêndios coordenados e constatou que, de lá para cá, 65% das áreas foram embargadas por infrações diversas, mas somente 10% por uso ilegal do fogo.
Foram emitidas 662 multas pelo crime incendiário ambiental, em um total de cerca de R$ 1,3 bilhão, mas apenas R$ 41 mil foram pagos, sendo que 29 dessas terras ainda foram beneficiadas com recursos de crédito rural, recebendo mais de R$ 200 milhões (¾ do dinheiro para aquisição, criação e manutenção de bovinos).
O resultado imediato à queimada, especialmente no Pará, foi que a área de pastagem aumentou 31% enquanto a de agricultura cresceu 55%. Nenhuma prisão foi feita nos cinco anos desde o Dia do Fogo.

Mesmo com planejamento, execução e intenção tão escancarados, nem seria preciso ir ao extremo que a Espanha, por exemplo, chegou em relação às queimadas. Em 2006, com aumento de incêndios por ação humana, o país estabeleceu legislação garantindo que áreas florestais destruídas por fogo não poderiam ser comercializadas, reclassificadas nem utilizadas para outros fins pelo período mínimo de trinta anos. A consequência, segundo o governo, foi uma “expressiva redução de incêndios criminosos por interesse especulativo”. No Brasil, se os bancos verificassem concessão de crédito mediante critérios socioambientais e vedasse empréstimo a imóveis rurais que tenham utilizado queimada de modo ilegal já produziria imenso resultado.

A primeira-dama Janja, o presidente Lula e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva: mobilização urgente no combate aos incêndios (Crédito:Ricardo Stuckert )

Queimadas são proibidas em áreas de florestas e vegetação nativa, segundo o Código Florestal Brasileiro e a Lei de Crimes Ambientais, “salvo” — e é aí que mora o perigo — “em casos específicos autorizados pelo órgão ambiental competente” e “em casos excepcionais, como para fins agrícolas, pode ser permitido o uso controlado do fogo”. Com uma legislação tão permissiva, o País viu ¼ do território, uma área superior à do México (13º maior do mundo), ser consumida pelo fogo entre 1985 e 2023 — quase 70% desses 200 milhões de hectares, de vegetação nativa.

99,9% dos incêndios foram causados por ação humana
Wolnei Wollf, secretário da Defesa Civil

“No Brasil, temos dois principais crimes que abordam os incêndios florestais. O principal criminaliza a conduta de quem provoca incêndio em florestas ou em demais formas de vegetação, estipulando a pena de 2 a 4 anos, além de multa, quando há a intenção de provocar o incêndio, e pena de seis meses a um ano, além de multa, se o incêndio for culposo”, diz o advogado Enzo Fachini, especialista em Direito Penal.

Segundo o Código Penal Brasileiro, “se o incêndio é causado em lavoura, pastagem, mata ou floresta, a pena pode ser de quatro a oito anos, se doloso, e de seis meses a dois anos, se culposo”. Mas, como vimos no Dia do Fogo de 2019, nada acontece. Ou pior.

“Vamos avaliar os prejuízos junto aos produtores e sindicatos rurais e entrar estendendo a mão. O agronegócio é fundamental para o Estado”, reagiu o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, ao Dia do Fogo da última semana.

Bombeiro combate as chamas em São Carlos, interior de São Paulo: focos começaram de forma simultânea na região (Crédito:Lourival Izaque)

Prejuízos

A Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo estimou inicialmente o prejuízo em R$ 1 bilhão. Nove pessoas já foram presas suspeitas de ações criminosas e dois brigadistas morreram no combate às chamas. Os prejuízos à saúde são maiores, já que a fumaça tornou o ar irrespirável em diversos locais, com aumento de 60% nos atendimentos em Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e Unidades Básicas de Saúde (UBSs) relacionados à má qualidade do ar, segundo o Ministério da Saúde. “Esse aumento aconteceu principalmente na parte infantil”, disse a diretora do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental do Ministério da Saúde, Agnes Soares. “Além de afetar a qualidade do ar que respiramos, especialmente para crianças e idosos, que são mais vulneráveis, fecham aeroportos, rodovias”, completa Marengo.

Flávio Dino, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que os ministérios da Defesa, da Justiça e do Meio Ambiente mobilizem com urgência efetivo “cabível” para atuar no combate a incêndios no Pantanal e na Amazônia. Também ordenou a elaboração de um plano de combate e propôs a abertura de crédito para financiar as ações. Talvez não seja o suficiente para salvar o ano que registrou, entre janeiro e agosto, um aumento de 78% de focos de incêndio em comparação ao mesmo período em 2023, segundo o INPE. “Esse ano a situação é realmente muito preocupante, já que ainda não chegamos ao momento mais grave, mais crítico, que é o mês de setembro”, conclui Ane Alencar.

O que EUA, Chile e Portugal têm a nos ensinar
Incêndios florestais abalaram recentemente países europeus e áreas americanas de clima mediterrâneo, obrigando-os a ações efetivas

As imagens do fogo consumindo boa parte da Califórnia assombraram o mundo em 2021. Após o pior incêndio da história no estado norte-americano, o governo tomou uma série de medidas de contenção. Foram destinados US$ 2,7 bilhões (R$ 15 bilhões) para aumentar a resistência de florestas contra incêndios, além da aquisição de aeronaves e helicópteros, tanto para combate às chamas quanto para transportar bombeiros florestais até áreas de difícil acesso.

Em 2017, Portugal sofreu com o fogo quando as chamas mataram mais de uma centena de pessoas. Foi criada então a Agência de Gestão Integrada do Fogo, para articular prevenção, conscientização e combate. Desde então, o número de incêndios florestais por lá tem caído muitas vezes pela metade no balanço anual.

Já no Chile, a Corporação Nacional Florestal, que administra os parques nacionais e controla incêndios florestais, estabeleceu efetivo mínimo de brigadistas permanentes, em contingente ampliado por contratações temporárias nos períodos mais críticos do ano.

Califórnia, nos EUA: combinação de tempo seco e calor causa constantes incêndios florestais, como visto no Park Fire (Crédito:Ethan Swope)