A onda da esposa tradicional: internet resgata estilo dona de casa retrô
Por Ana Mosquera
RESUMO
• Mulheres ganham as redes sociais divulgando suas rotinas inspiradas nas donas de casa dos anos 1950
• Mesmo anunciado como passageiro, o movimento perpetua o conservadorismo
• E contraria a luta feminista por independência, sobretudo financeira
“Esposa tradicional” ou “trad wife” é o novo fenômeno das redes sociais. Nele, influenciadoras digitais seguem normas de gênero que poderiam estar em manuais de etiqueta vitorianos, propagandas e programas dos anos 1950. Em Mulheres Perfeitas, escrito por Ira Levin em 1972, esposas são levadas a uma comunidade isolada e transformadas em robôs para atender aos desejos de seus maridos. No mundo virtual, as chamadas “trad wives” dizem se dedicar, de forma voluntária, às tarefas domésticas e às necessidades da família, delegando aos maridos, sobretudo, o controle da vida financeira.
A novidade supera qualquer apreço individual da vida doméstica: ela está na subserviência aos homens e em como tais atitudes comprometem o empoderamento feminino. “A história mais antiga da aliança entre homens e mulheres é a exploração do trabalho de cuidar, em que elas sustentam a vida deles fora de casa”, diz Anna Gallafrio, doula de divórcio.
O trabalho doméstico não remunerado gera cerca de 13% do PIB mundial, segundo estudo do FGV IBRE. “Quando o público pertence ao homem e o privado à mulher, ela deixa de ganhar a universidade, a política e os espaços de poder.”
Um dos argumentos das mulheres que se dizem confortáveis na situação, inclusive, está na diminuição da sobrecarga, já que a entrada no mercado de trabalho não exclui a responsabilidade pelas tarefas da casa.
A adesão ao discurso das “esposas tradicionais”, contudo, pode ser perigosa. “Quando olhamos os índices de violência doméstica e feminicídio subindo, vemos que a independência financeira é muito importante. Se a mulher não tem dinheiro para sobreviver fora de um casamento, ela não tem autonomia”, diz Maria Carol Medeiros, professora da FGV Comunicação Rio e pesquisadora da socialização feminina.
Pequenas armadilhas
“Cuidado, meu bem, há perigo na esquina”, escreveu Belchior, ao falar sobre uma geração que repetia os costumes da anterior. A diferença é que a armadilha agora está nas redes sociais e as mulheres de hoje têm mais poder de escolha do que as da década de 1970, quando ‘Como Nossos Pais’ foi composta.
A autonomia, porém, tem recorte de classe e de situação racial. A personagem vivida por Rachel Brosnahan na série Maravilhosa Mrs. Maisel, uma mulher branca que se rebela contra a condição única de esposa e mãe para ganhar os palcos de stand up nos anos 1950, só consegue fazer a mudança com a ajuda de uma empregada doméstica.
Do mesmo modo, hoje, uma série de mulheres que se autodenominam “troféu” delegam as funções do lar a outras, em sua maioria pretas e periféricas. A armadilha segue montada. “A partir do momento que não corresponderem às expectativas sociais de uma esposa-troféu, de estar arrumada e atender às necessidades do marido e da família, ou em situação de doença e pelo avanço da idade, elas serão substituídas”, diz Jéssica Melo Rivetti, socióloga, doutora em sociologia pela USP e em filosofia pela Universidade de Granada.
O fato de o movimento ter lugar na internet gera dúvidas com relação à sua existência na vida real — o que não exclui a preocupação sobre suas consequências. “Há mulheres que alternam publicações da rotina com mensagens de cunho ideológico, em relação a teorias conspiratórias e a movimentos de supremacismo branco”, diz Medeiros. “Pode ser só um movimento estético da geração Y ou Z, mas ele está embasado em um discurso muito mais profundo do antifeminismo. Mesmo que não dure, seus valores políticos e ideológicos podem se perpetuar”, diz Rivetti, ao conectá-lo a outra onda: a do conservadorismo político.