Cultura

Gramado celebra o ressurgimento do cinema nacional

O sucesso da nova geração do audiovisual brasileiro, na 52ª edição do Festival de Gramado, revela a boa fase do setor e marca a retomada definitiva da indústria cinematográfica após os desastres causados pela pandemia e pelo descaso do governo Bolsonaro

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'Barba Ensopada de Sangue': dirigido por Aly Muritiba, o filme baseado na obra de Daniel Galera narra a trajetória de um protagonista que se isola após perdas e traições (Crédito: Divulgação )

Por Melina Guterres, de Gramado

Apesar de o cinema no Brasil ter surgido em 1896, apenas um ano após a primeira sessão da história, promovida em Paris, sua trajetória é marcada por uma série de crises e interrupções. Nos anos 1960, o Cinema Novo, movimento crítico da realidade social e política, enfrentou os militares com talento e coragem. Com a chegada da ditadura, diretores como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos tiveram que adaptar seus trabalhos para contornar a repressão. Durante o governo Collor (1990-1992) e, mais recentemente, na gestão Bolsonaro, foram feitos inúmeros cortes e boicotes institucionais ao setor — produções como Marighella, de Wagner Moura, e A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, foram atacados e enfrentaram dificuldades no lançamento.

O cinema e a cultura no Brasil ainda dependem muito de políticas públicas. Programas como o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e leis de incentivo, como a Lei Rouanet, têm sido cruciais para financiar projetos nessa área. O Festival de Cinema de Gramado, o mais antigo do Brasil, celebrou sua 52ª edição com um clima de retomada, após enfrentar desafios significativos, demonstrando a resiliência e o vigor da indústria cinematográfica nacional.

Oeste outra vez: bangue-bangue à brasilera, a produção de Erico Rassi fala de homens que sofrem e matam uns aos outros depois de abandonados em decorrência de amores não correspondidos (Crédito:Divulgação )

Apesar da tragédia que atingiu o Rio Grande do Sul em maio, o que provocou o fechamento do aeroporto de Porto Alegre, o festival conseguiu reunir artistas do Brasil e do exterior. Entre eles estavam Mariëtte Rissenbeek, primeira mulher a dirigir o Festival de Cinema de Berlim, a atriz Vera Fischer, o ator Matheus Nachtergaele e o diretor gaúcho Jorge Furtado, que completa 40 anos de carreira. “Seguimos firmes e fortes. Esse ano foi muito especial, as pessoas se emocionaram e agradeceram a continuidade do evento”, afirma Rosa Helena Volk, presidente do Gramadotur, realizadora do evento.

A TV Brasil também esteve presente na cidade. “Incentivar o festival depois de todo o difícil contexto vivido é apostar na resiliência e na coragem do povo gaúcho para reconstruir e retomar a cena cultural, social e econômica do Estado”, afirmou Jean Lima, presidente da EBC.

A vez das mulheres

Dos seis longas de ficção, quatro deles eram de diretoras mulheres, entre elas a atriz Dira Paes, que estreou na função: “Dirigir Passárgada tem sido um processo de realização e aprendizado, durante todas as etapas dessa artesania do cinema. Minha experiência é fruto da minha trajetória”.

Eliane Café levou o Kikito de melhor direção por Filhos do Mangue, que narra a história de um homem em situação de vulnerabilidade após a perda da memória. Já a fragilidade do universo masculino é estampada no grande vencedor da noite: Oeste Outra vez, de Erico Rassi, é um faroeste à brasileira, no qual homens sofrem e matam uns aos outros por amores não correspondidos no sertão de Goiás.

Motel destino: aplaudido de pé no Festival de Cannes, do qual participou da competição oficial, novo filme de Karim Ainouz traz Fábio Assunção, Iago Xavier e Nataly Rocha em um triângulo amoroso formado por pessoas oprimidas (Crédito:Divulgação )

O tema da fragilidade masculina também esteve presente em Barba Ensopada de Sangue, de Aly Muritiba. Inspirado na obra de Daniel Galera, gira em torno de um personagem que se isola após perdas e traições. O cineasta, que já foi agente penitenciário, diz que “os homens estão fragilizados e adoecidos emocionalmente há muito tempo. O que acontece agora é que queremos falar sobre eles”.

Estômago 2 – O Poderoso Chef, de Marcos Jorge, traz a máfia italiana e o cárcere do Brasil. Apesar do protagonismo masculino, o roteiro tem na trama mulheres fortes que tomam decisões alterando toda a narrativa. Motel Destino, novo filme de Karim Aïnouz que participou da competição oficial do Festival de Cannes, fala sobre um triângulo amoroso entre pessoas oprimidas que se encontram e se apaixonam. O filme estreia nesse fim de semana.

O sucesso dos filmes nacionais no Festival de Cinema de Gramado mostra a força de um Brasil que assume a crítica social e olha para sua diversidade sem medo, valorizando as produções fora dos grandes centros. Na premiação, o ator Nicolas Siri, de Estômago 2, foi fortemente aplaudido quando disse: “No início de janeiro de 2023 nós voltamos à respirar”, fazendo referência ao primeiro dia após a saída do governo Bolsonaro do poder. Com talento e uma linguagem original e brasileira, esse “novo cinema novo” traz às telas um cinema crítico, humanista, sensível às diferenças, questionando cada vez mais os papéis dentro das estruturas sociais.