Brasil

STF golpeia falta de transparência das emendas e parlamentares perdem o chão

Crédito: Gustavo Moreno

Chefes dos Três Poderes (Judiciário, Legislativo e Executivo) reuniram-se na terça-feira, 20, no STF, para discutir a crise das emendas (Crédito: Gustavo Moreno)

Por Vasconcelo Quadros

RESUMO

• STF confronta superpoderes do Congresso sobre o Orçamento, impõe acordo com o governo e abre investigações sobre suspeitas de corrupção em emendas
• Reunião de cúpula dos Poderes implode segredos de emendas PIX e condiciona liberação de pagamentos à transparência

A retirada dos segredos sobre as emendas parlamentares está deixando congressistas de cabelo em pé. E não é só porque o Supremo Tribunal Federal se debruçou sobre o Orçamento da União usurpado nos últimos dez anos: o que tem causado mais medo é o facho de luz que os órgãos de controle jogaram sobre os autores das emendas e o destino dos recursos que só em 2024 chegaram a R$ 52 bilhões. Na ponta do lápis, isso equivale a 52% de tudo que restou ao governo para investimentos, e que, distribuídos igualmente entre deputados e senadores, significa dizer que cada um deles tem para gerir neste ano de eleições municipais algo em torno de R$ 87,5 milhões.

É por isso que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reagiu indignado ao “sequestro” do dinheiro público federal, e o STF, ao constatar a falta de transparência e de vestígios de corrupção, decidiu apoiar unanimemente a suspensão do pagamento de emendas em três decisões consecutivas do ministro Flávio Dino.

O STF deu a senha para coibir a bandalheira. Há na Corte pelo menos 13 inquéritos encaminhados pela Procuradoria Geral da República apontando suspeitas de malversação:
superfaturamento de obras,
empresas em nome de parentes, amigos ou testas-de-ferro de parlamentares,
e a íntima relação de “suas excelências” com o destino do dinheiro das emendas.

Flávio Dino, ministro do STF: “O acordo não finaliza os processos. Tanto que as liminares continuam valendo” (Crédito:Sergio Lima / AFP)

O primeiro passo agora é um levantamento pela Controladoria Geral da União (CGU) com apoio da Advocacia Geral da União (AGU) e a participação, que até aqui era tímida, do Tribunal de Contas da União (TCU). Num segundo momento, o caso será tratado pela Polícia Federal, que já vem monitorando irregularidades em municípios para os quais foi parte da dinheirama, mas pode acabar tendo de organizar uma operação de vulto, uma vez que a rapinagem segue modus operandi padrão. Um dos alvos são as chamadas emendas PIX, através das quais o Tesouro liberou este ano R$ 8,7 bilhões, e que, segundo as suspeitas, chegaram aos municípios e lá, em grande parte dos casos, destinados a obras geridas por prefeitos ligados aos parlamentares.

O acordo fechado pela cúpula dos três Poderes na terça-feira, 20, sob a coordenação do presidente do STF, Luís Roberto Barroso, foi apenas uma tentativa de estancar a crise, mas está longe de representar uma solução para o impasse.
As tratativas atenuam as tensões explicitadas no diálogo áspero entre o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e Dino que, no encontro, chegou a comparar a voracidade dos congressistas à prática de rachadinha.
O STF passou a atuar quando a bandalheira, francamente oposta ao princípio constitucional de transparência e rastreabilidade, extrapolou o princípio da razoabilidade e, salvo entendimento que recoloque ordem nas Casas Legislativas, não reconsiderou as decisões que suspenderam o pagamento das emendas.

Há um consenso pleno de que é preciso que haja rastreabilidade e transparência dessas emendas”, diz Luís Roberto Barroso, presidente do STF (Crédito:Ettore Chiereguini)

O que se decidiu na reunião foi que, num prazo de dez dias, o governo e o legislativo devem encontrar uma fórmula de regulamentar as emendas. A primeira batalha foi, no entanto, vencida pelo STF, ao afastar do processo a mais escandalosa das modalidades de emenda, que são as PIX, conforme Barroso afirmou depois do encontro: “Isso que nós ajustamos não poderá permanecer”. A torneira foi fechada. Se Lula transformar sua indignação em ações concretas, no Orçamento do ano que vem – cuja análise está suspensa desde o início da crise –, o valor global das emendas parlamentares será reduzido e cairão os códigos que tornaram secreto o destino do dinheiro que os parlamentares camuflaram em emendas individuais, do relator, de comissão ou de transferência especial, a famigerada PIX.

Lula mostrou a Lira (à esq.) e Pacheco (à dir.) que o Congresso não pode mais concentrar a metade dos recursos do Orçamento (Crédito:Jefferson Rudy)

Com atuação como amicus curiae nas ações que tramitam no STF, a ONG Transparência Brasil instruiu as decisões com dados incontestáveis sobre a usurpação do Orçamento.

Com a proibição do orçamento secreto, em 2022:
 Lira e os líderes, inclusive os do PT e da esquerda, inventaram as emendas de comissão e das propostas individuais impositivas,
surgiram as PIX, modelo pelo qual em menos de 1% do montante há alguma informação sobre aplicação.

O levantamento da Transparência mostra que de R$ 600 milhões em 2020, o volume de recursos chegou em R$ 7 bilhões em 2022 – último ano da execução orçamentária que marcou a promiscuidade entre o governo de Jair Bolsonaro e o Centrão –, mas não parou por aí.

Abalado por uma tentativa de golpe e recíproco à generosidade do Congresso, que aprovou um extra de R$ 145 bilhões na PEC da Transição, Lula se deixou aprisionar pela armadilha e permitiu, sem resistência, que este ano os parlamentares gastassem como quisessem um volume maior do que em 2023. Lula só se deu conta quando metade do dinheiro previsto no Orçamento para investimentos havia sido sequestrado pelo Congresso.

É uma subversão ao republicanismo, que não só tira o poder de barganha do Executivo como aprofunda os riscos à governabilidade e ao presidencialismo de coalizão, onde o legislador, que tinha a atribuição de emendar o Orçamento, sugerindo apenas ajustes às políticas públicas previamente planejadas por um corpo técnico, passou a exercer o poder de fato como controlador do dinheiro público.

O presidente Lula reagiu indignado ao “sequestro” do dinheiro público, e o STF, ao constatar a falta de transparência e de vestígios de corrupção, decidiu apoiar unanimemente a suspensão do pagamento de emendas

Inversão de papéis

No governo Bolsonaro houve uma verdadeira inversão de papéis. Conforme levantamento da Transparência Brasil nas ordens de pagamento, obras de escolas e creches destinadas ao programa da primeira infância, os projetos, sem exceção, foram determinados pelo Congresso. “Todo o dinheiro liberado vinha de pedidos das emendas. O governo não estava governando e nem dizendo para onde o dinheiro deveria ir”, disse Juliana Sakai, diretora de operações da Transparência à ISTOÉ. O que era exceção virou regra mantida no atual governo. “Emendar é diferente de ter uma parcela tão gigantesca do Orçamento”.

O que o ministro Flávio Dino fez nas últimas duas semanas foi, na verdade, um ataque aos superpoderes acumulados pelo Congresso. Os críticos do ministro não tardaram a enxergá-lo como um “novo líder do governo no STF” pelo fato de ter sido indicado por Lula, acusando-o de agir em dobradinha com o Planalto. Ao ouvir de Lira na reunião que o placar no jogo entre os Poderes estava em “dois a um” por causa da “tabelinha” Judiciário-governo, Dino respondeu que suas decisões são técnicas e foram tomadas para corrigir os vícios de inconstitucionalidade. A decisão unânime do STF, segundo fontes ligadas ao ministro, torna as alegações de Lira mera ilação: os ministros André Mendonça e Nunes Marques, indicados por Bolsonaro, que ele apoiou incondicionalmente em 2022, endossaram as decisões.

O encontro que reuniu Lira, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o procurador-geral da República, Paulo Gonet, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, e sete ministros do STF na terça-feira foi só um freio de arrumação, com o Judiciário atuando como contrapeso para restabelecer o equilíbrio entre dois Poderes em conflito.

O que o Judiciário considera relevante seria um novo pacto que redefina o papel das emendas, já que, ao empoderar parlamentares, esvaziou a gestão do Executivo e colocou em xeque o funcionamento do presidencialismo. Pacheco reafirmou que o Congresso tem legitimidade para participar do Orçamento e considerou o tema “eminentemente político”, mas disse respeitar as decisões do STF em nome da transparência. “Uma vez judicializado o tema, cabe ao STF decidir”, reconhece.

Dino esclareceu que a reunião não consolidou uma norma, mas considerou que o encontro criou balizas para um caminho que pode acabar em um acordo, embora nenhuma das decisões que tomou tenham sido refeitas ainda e as liminares continuem valendo. “A tendência é levar as propostas ao plenário (do STF) para o julgamento definitivo”, diz Dino. A pergunta que todos fazem é se Lula aceitará que deputados e senadores continuem como sócios igualitários no Orçamento de 2025.

O criador e a criatura
As famigeradas emendas impositivas, que criaram uma crise entre os Poderes, tiveram origem durante a gestão de Eduardo Cunha na direção da Câmara em 2015

Fisiologismo Cunha, o inventor das emendas impositivas, deixou um legado em que a chantagem domina a Câmara (Crédito:Geraldo Magela)

A liberação de recursos do Orçamento via PIX, que marcou o empoderamento de Arthur Lira, nada mais é do que a evolução das emendas impositivas criadas em 2015 quando o ex-deputado Eduardo Cunha era o presidente da Câmara e que também se tornou poderoso no comando do Centrão.

Flagrado à época em desvios, Cunha tentou emparedar a ex-presidente Dilma Rousseff para livrar-se do cerco policial, primeiro ameaçando e depois colocando na pauta o pedido de impeachment.

Acabou cassado e preso, mas deixou como legado a armadilha das emendas parlamentares e o estilo de reagir a desafios usando a chantagem como arma.

Lira tentou retaliar agora desengavetando dois projetos que restringem a atuação do STF, um acabando com decisões monocráticas e o outro que dá ao Congresso a estranha prerrogativa de derrubar sentenças do Poder Judiciário.

Os dois já foram aliados incondicionais, ascenderam do baixo clero pelo fisiologismo e chegaram ao poder distribuindo nacos do orçamento. A habilidade política, o controle do regimento interno e a arte de isolar adversários são traços comuns entre os dois. Lira tentou livrar o amigo da cassação, em 2016.