Venezuela rogai por nós

Crédito: Evaristo Sa

Carlos José Marques: "Lula, caso quisesse, poderia tocar mais fundo e certeiro no coração e alma do déspota opressor, mas prefere tergiversar e cozinhar o drama dos vizinho" (Crédito: Evaristo Sa)

Por Carlos José Marques

Que os apelos e orações de um povo tão sofrido, tolhido e invadido nos seus direitos civis mais elementares alcancem também os ouvidos do demiurgo de Garanhuns, o impoluto Lula, que flerta com o regime autocrático e deplorável do ditador Nicolás Maduro, aquele que usurpou na cara dura e na mão leve o sistema eleitoral do seu país, fraudou o resultado das urnas e escamoteou a contagem de votos para se garantir perpetuamente no poder. A quem recorre a esse pendor e prática golpista é costumeiro que se atribua o neologismo de ditador. O faceiro caudilho dos trópicos latinos, Maduro, é mais que isso.

Extrapolou. Sua crueldade e sina diabólica têm gerado mortes, perseguições, prisões arbitrárias. Ele soube manipular mais uma vez o sistema local, à revelia dos protestos internacionais. E, nenhuma surpresa, Lula, o brasileiro que avidamente defende a democracia e o legítimo processo de escolha, aquiesceu, colocou a mão na cabeça do colega, dando quase a sua benção ou, no mínimo, demonstrando descaso com a bandalheira ali praticada. Nem dá para acreditar! O que isso representa? Para além da vergonha diplomática brasileira em escala global, uma demonstração inequívoca de que o nosso chefe de Estado é adepto da ideia dos dois pesos e duas medidas, pregando o princípio do “aos amigos tudo, aos inimigos a força da lei”. Lula enxovalha a reputação nacional, além da própria narrativa e reputação. A lorota de se apegar a atas de contagem dos votos – que nunca vieram e que podem ser facilmente manipuladas – evidencia o quanto constrangido ele está em defender o indefensável. Já passou da hora da verdade. Lula não tem mais como se apegar a pretextos e seguir indefinidamente na base dos contorcionismos verbais, ignorando o inominável esbulho venezuelano para sustentar a simpatia indisfarçável que nutre pelo regime bolivariano impregnado como praga na região. Foi além da conta. A celebrada vitória de Maduro é um embuste a olhos vistos, sem álibi ou esteio no terreno das verdades. Por conta disso, Lula chafurda, afunda em meio à confusão. Curiosamente mostra-se leniente com Maduro enquanto dá piti diante de outro histórico aliado, não por acaso protagonista da ditadura sandinista na Nicarágua, Daniel Ortega. Chegou a expulsar a embaixadora em resposta à atitude semelhante desse colega ideológico. Erra e perde em ambos os tabuleiros e confunde o mundo quando deveria se apresentar como um consciente defensor das liberdades. Onde foi parar o “Lulinha paz e amor” de outrora? O recado aos tiranos Maduro e Ortega deveriam ser firmes, claros, sem meias palavras ou atos. O Brasil está diminuindo de tamanho e relevância com comportamentos titubeantes assim. Não é mais ouvido, levado a sério, respeitado. Bem que o francês Emmanuel Macron e o norte-americano Joe Biden chegaram a pegar o telefone para alertá-lo da importância de sua condução eloquente a favor dos princípios democráticos. Mas pouco ou nada valeu. Falta muito de pragmatismo e sinalização correta do Itamaraty nesse sentido. O comportamento do conselheiro em relações exteriores, ex-ministro Celso Amorim, nesse caso é um exemplo e foi, no mínimo, claudicante, elogiando desde o primeiro instante a contagem das urnas na Venezuela, classificando-a de condução limpa, transparente e ágil. Pegou mal, muito mal. O Brasil não está conseguindo navegar com equilíbrio no mar revolto das rivalidades geopolíticas. Tem sido estabanado nas escolhas, nos posicionamentos e propósitos. O surpreendente é que Lula sempre se apresentou como alguém que professa pela cartilha da defesa dos pobres e oprimidos. Por que não lançar esse olhar benevolente também sobre os castigados hermanos venezuelanos? Tenha piedade, compaixão ante o trauma que enfrentam, causado basicamente por ninguém menos que o seu parceiro de trajetória política. Entre os brasileiros, dada provavelmente à conscientização gerada por episódios recentes de ataques à República, a resposta a uma pesquisa na capital paulista apontou que 79% enxergaram fraude no escrutínio venezuelano. Uma quase totalidade de opiniões, posição esmagadoramente majoritária que deveria ter algum peso. Hoje, a esperança de que a realidade mude por lá está pendurada numa negociação conduzida pelos EUA que acenam com anistia a Maduro caso ele abdique do poder. Remotas as chances, ainda mais com o aparato militar a seu favor. Lula, caso quisesse, poderia tocar mais fundo e certeiro no coração e alma do déspota opressor, mas prefere tergiversar e cozinhar o drama dos vizinhos. Sua aura de semideus de combalidos e abandonados vai perdendo força. Míope estratégia que adotou.