Brasil: doenças sem controle
Disseminação de notícias falsas sobre vacinas e falta de informação correta entre os próprios profissionais da saúde ativam a circulação de vírus e bactérias, colocando em risco muitas vidas
Por Maria Ligia Pagenotto
Há cerca de um mês, o Brasil saiu da lista dos 20 países com mais crianças não vacinadas no mundo. A informação, divulgada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), foi bastante comemorada por especialistas que defendem a imunização como a principal ferramenta para controlar ou reduzir doenças provocadas por vírus ou bactérias. Afinal, o País, que por anos chamou a atenção por sua extensa cobertura vacinal, vinha enfrentando desde 2016 uma queda significativa na adesão aos imunizantes. No último ranking, em 2021, o País ocupava a sétima colocação.
80%
Contra HPV
É a meta do MS. Os números seguem abaixo do esperado no País por preconceito e desinformação
500%
Alta no PR
Crescimento de casos de coqueluche em julho, no Paraná, superou muito dados do mesmo mês de 2023
Preocupado com essa posição, o Ministério da Saúde (MS) lançou, em fevereiro do ano passado, o Movimento Nacional pela Vacinação, com o objetivo de deixar claro para a população a importância das vacinas, assegurar sua eficácia e segurança, os pilares mais abalados nesse contexto. O Brasil já foi “invejado” por seu Programa Nacional de Imunizações, lançado em 1973. “O brasileiro sempre confiou nas vacinas, mas, de um tempo para cá, a hesitação vacinal ganhou corpo”, diz a médica Mônica Levi, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Esse comportamento não tardou a fazer estragos. Um exemplo é a negligência em relação à vacina que protege contra difteria, tétano e coqueluche (vacina DTP). Em 2012, a coqueluche voltou a crescer, mas foi controlada após uma série de campanhas. O último pico epidêmico da doença foi em 2014, com mais de 8.500 casos confirmados.
No entanto, entre 2019 e 2023, segundo o MS, todos os 27 estados do País notificaram casos de coqueluche. Este ano, os números continuaram altos. Entre janeiro e junho, a Secretaria de Saúde de São Paulo notificou 139 casos da doença, um crescimento de 768,7% na comparação com os seis primeiros meses do ano passado, quando houve um total de apenas 16 casos no estado.
“A vacinação é uma das mais eficazes ações de políticas públicas voltadas para a saúde infanto-juvenil.”
Clóvis Constantino, presidente da SBP
No Paraná, nos primeiros 15 dias de junho, foram confirmados 24 casos de coqueluche, número que corresponde a uma alta de 500% em relação ao mesmo período de 2023. Em julho, na cidade de Londrina, ocorreu uma morte pela doença: um bebê de 6 meses, o primeiro óbito por coqueluche no Brasil depois de três anos.
O ideal é que a gestante se vacine, transferindo os anticorpos para o bebê. O imunizante está disponível no SUS. Mas a vacinação não está acontecendo como deveria, segundo a médica Isabella Ballalai, diretora da SBIm. “Apenas 30% ou 40% se vacinaram este ano.” Quando ministrada na grávida, a vacina protege o bebê durante seu primeiro ano de vida. “É muito importante seguir a orientação à risca, porque 100% dos óbitos costumam ocorrer quando a criança tem menos de 3 meses.”
Outro ponto de atenção é o sarampo. A vacina contra é a tríplice viral (inclui sarampo, rubéola e caxumba), também no SUS. “O Brasil havia erradicado a doença do seu território, recebeu até um certificado por isso em 2016”, afirma Isabella.
Dois anos depois, a doença reaparece em Roraima, após contato de brasileiros não vacinados com venezuelanos contaminados. Depois da pandemia, segundo a diretora da SBIm, houve alguns surtos localizados de meningite menincogócica, cuja prevenção também pode ser feita por vacinação no SUS.
Desafio global
A meta do Ministério da Saúde e dos profissionais comprometidos com a saúde coletiva é que a credibilidade no esquema vacinal volte a ser uma realidade. “A hesitação vacinal é um desafio global”, assegura o médico Clóvis Francisco Constantino, presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). “Lutamos para que a população tenha clareza sobre a importância da vacinação como uma das mais eficazes ações de políticas públicas voltadas para a saúde infanto-juvenil.”
A falta de informação e de comunicação, a circulação de notícias falsas e a falta de percepção do risco de contaminação são alguns dos fatores que levam as pessoas a terem receio de se vacinar ou mesmo não acharem necessário. Segundo Mônica, a confusão atinge até profissionais da saúde. “Vejo colegas perguntando se é preciso se vacinar contra a covid novamente, sendo que desde janeiro isso está sendo divulgado nos canais oficiais.”
Além da circulação de fake news sobre as vacinas, segundo os especialistas da SBIm, muita gente esbarra na falta de pessoal nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). “Há relatos de pessoas que chegam aos postos e não encontram quem os vacine naquele momento”, afirma Mônica. É preciso retornar, o que nem sempre ocorre. A falta de percepção do risco de contágio é outro problema, segundo Isabela. Há ainda quem esbarre em atendentes opinando sobre dar ou não determinada vacina. A professora Carol Caetano viveu essa situação quando levou a filha para se vacinar em Sorocaba (SP) contra o HPV, vírus associado ao câncer de colo de útero e a outros tumores em homens e mulheres.
“Fiquei surpresa quando a moça me puxou de lado para dizer que achava que eu não deveria dar a vacina para minha filha – ‘esse tipo de vacina pode dar a entender que as meninas podem ter vida sexual ativa’, falou”. O papel, então, inverteu: Carol teve de explicar a ela o caráter preventivo da vacina e sua importância.
“A desinformação em relação às vacinas é relativamente nova no Brasil. Cresceu com a pandemia de Covid e com as proporções políticas que a vacinação tomou”, afirma Éder Gatti, diretor do departamento do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde (DPNI). “Disseminadores de desinformação ganharam força e isso fez um estrago muito grande.” O DPNI está trabalhando, segundo Gatti, para fomentar informações positivas. “Resgatamos a figura do Zé Gotinha, popular entre as crianças, e criamos o Saúde Consciência, plataforma que monitora a desinformação”, pontua.
Para quem busca informações confiáveis sobre vacinação, Mônica Levi recomenda a consulta em fontes oficiais: Ministério da Saúde, Anvisa, Fiocruz e no site da SBIm, além do endereço da Família SBIm, uma espécie de enciclopédia sobre imunizantes.
Extrema-direita quer controle do CFM
A gestão do Conselho Federal de Medicina (CFM) corre o risco de ficar na mão de profissionais ultraconservadores e negacionistas, segundo especialistas que se opõem aos resultados da recente eleição do órgão. No início de agosto, 400 mil médicos do País escolheram os nomes que farão parte do CFM até 2029. É esse conselho que irá escolher a diretoria e interferir em políticas públicas de saúde no País.
Médicos da oposição, como Ana Costa, contestam a eleição e pedem investigação. “Há denúncias robustas de uso personalizado de recursos públicos nesse grupo que está há 25 anos à frente do CFM”, diz.
Pelo menos nove dos conselheiros eleitos são conhecidos por suas posturas ultraconservadoras. “Na pandemia, essa gestão assumiu compromissos indefensáveis, como tratamentos com cloroquina e contra vacina, indo contra a ciência”, afirma Ana. “Esse grupo foi se mostrando como um braço muito perigoso de um campo político não democrata, não associado à ciência e às boas práticas da medicina.”