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Flávio Dino mira emendas e acerta na coalizão que sustenta Lula; entenda

Crédito: Agência senado

Lira, Pacheco e Alcolumbre reconhecem o poder do STF, mas mandam recado a Lula: não aceitarão decisão que retire força dos parlamentares sobre Orçamento (Crédito: Agência senado)

Por Vasconcelo Quadros

RESUMO

• STF exige transparência sobre o destino das emendas e restringe o apetite parlamentar pelo Orçamento
• Com isso, deixa o “abacaxi” nas mãos do governo
• Planalto terá de agir com cautela para evitar rachaduras no centro conservador que o ampara no Congresso

 

O ministro Flávio Dino calibrou a mira do STF nos segredos que encobrem as emendas parlamentares, mas acabou acertando o núcleo do poder político, em Brasília. Desde que suspendeu os repasses de valores e impôs transparência na aplicação do colossal Orçamento gerido pelo Congresso, governo e parlamentares se exercitam em busca de uma solução que possa evitar o derretimento da coalizão do toma lá dá cá que sustenta o governo do presidente Lula.

Em rara ação coordenada, os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ingressaram no próprio STF com uma ação contra as decisões de Dino, alegando que as medidas em curso ferem a autonomia legislativa no controle de uma montanha de R$ 52 bilhões, cujo valor, desde 2017, foi crescendo sem limites, ano a ano, até transformar deputados e senadores em gestores de pequenas oligarquias em seus redutos eleitorais.

A decisão de Dino é monocrática, tem como base a Constituição da República e deverá ser referendada até o final de agosto por uma maioria confortável no STF, que há tempos ensaia um ajuste de contas com as práticas clientelistas que empoderam congressistas e destoam o legislativo do espírito republicano.

Ciente dos riscos à governabilidade, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, sustenta que “não há digitais” do Palácio do Planalto na iniciativa de Flávio Dino, mas diz que o governo acatará a decisão judicial e tentará empurrar o impasse sobre as emendas para o colo do STF, como se o Judiciário, e não o governo, fosse o dono do cofre.

Entre os 513 deputados e 81 senadores, ninguém acredita que Lula esteja acima dessa briga que, em seu primeiro reflexo, provocou o adiamento da leitura do relatório do projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) do ano que vem que o governo mandou ao Congresso.

A reação mais incisiva, depois de uma semana de suspense ensaiado, partiu de Lira, o mais importante líder do Centrão, que se sustenta na Câmara e quer fazer seu sucessor distribuindo benesses fatiando o Orçamento federal. Num evento em Brasília, na terça-feira, 12, ele disse que “decisão monocrática não vai tirar o poder do Congresso sobre emendas” e, num discurso que soa como música aos ouvidos dos parlamentares, defendeu a autonomia do Congresso, afirmando que o Orçamento não pertence apenas ao Poder Executivo.

“É bom sempre lembrar que o Orçamento não pertence unicamente ao Executivo. O Orçamento é votado pelo Congresso Nacional”.
Presidente da Câmara, Arthur Lira

Lira aproveitou a presença da ministra da Saúde Nísia Trindade no encontro em que Pacheco também esteve presente para afirmar que as Santas Casas e hospitais filantrópicos dependem de recursos de emendas destinadas por parlamentares que, enfatizou, são os que mais conhecem a realidade e as necessidades de saúde, um exagero.

(Mateus Bonomi)

Insegurança jurídica

O presidente da Comissão Mista de Orçamento, deputado Júlio Arcoverde (PP-PI) suspendeu a leitura do relatório da LDO até que o que ele chama de “insegurança jurídica” seja superada. Arcoverde garantiu que agiu por cautela, pois, ao ler o relatório, imediatamente teria de abrir espaço para a apresentação das emendas parlamentares, o que seria inócuo sem uma definição sobre as novas regras.

O deputado defende um acordo com Dino, segundo o qual o Congresso ajustaria as regras de transparência às emendas, enquanto o ministro voltaria atrás, retirando as restrições, algo improvável já que a decisão final envolverá todo o STF. O relator do Orçamento de 2025, senador Ângelo Coronel (PSD-BA), considera “direito adquirido” o poder sobre emendas, afirma que parlamentar não é fiscal de obra e sugeriu que o governo usou o Judiciário como “curva” para forçar o diálogo com o Congresso sobre as emendas.

“Prefiro acreditar que tenha sido uma iniciativa só do Supremo: o governo não é maluco de, num momento desses, numa época de esforço concentrado, fazer uma coisa dessas em relação ao Parlamento”, disse Júlio Arcoverde à ISTOÉ.

Ele lembra que Dino, que renunciou ao cargo de senador para entrar no STF, já passou pelo Congresso e sabe como isso funciona. “A suplente dele deve ter feito as indicações de emendas”, alfinetou o presidente da CMO. A suplente do ministro, senadora Ana Paula Lobato (PDT-MA), é autora de emendas no valor de R$ 36 milhões em 2024. Ela é apenas mais uma entre os 594 parlamentares.

Dividido equitativamente, o naco orçamentário dá a cada um algo em torno de R$ 87,5 milhões por ano. Um dos favoritos para à sucessão de Lira no ano que vem, o deputado Elmar Nascimento (BA), líder do União Brasil, enviou R$ 10,8 milhões para Campo Formoso, município baiano administrado pelo irmão, Elmo, num dos exemplos que multiplicam País afora.

Pegos de surpresa pelas decisões de Dino durante o recesso, os congressistas querem agora negociar um projeto de Lei ou uma PEC antes de uma decisão definitiva do STF.

Nos bastidores, os parlamentares não têm dúvida de que o governo aposta numa solução judicial via STF, sem dar a cara a bater, como fez em junho ao vetar R$ 6 bilhões das emendas de comissões – que sucederam o Orçamento secreto, no qual, as indicações eram chamadas de emendas do relator -, levando o Congresso a derrubar o veto numa negociação que terminou no restabelecimento de R$ 4,25 bilhões, manobra articulada com o apoio do senador Davi Alcolumbre (União Brasil), presidente da CCJ e cotado para suceder Pacheco.

Com seu apoio, seu estado natal, o Amapá, recebeu este ano R$ 393 milhões em emendas. Nesse primeiro momento, as baterias se voltaram para o STF através de agravos regimentais para derrubar as liminares.

Numa outra frente, o Congresso quer impedir que prospere no STF a Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADIN), de autoria do procurador-Geral da República, Paulo Gonet, pedindo o fim das emendas de transferência especial, as chamadas PIX, sobre as quais não há controle ou critério de destino.

Desmame parlamentar

Para 2024 estão previstos R$ 8 bilhões, dos quais, R$ 4,5 bilhões foram liberados antes da trava que impede repasses a três meses das eleições. Esgotados os recursos no Judiciário, o alvo é o governo, que será pressionado a buscar um acordo político em torno das emendas.

Ninguém fala abertamente, mas nos bastidores os próprios líderes governistas avaliam que um eventual desmame parlamentar das verbas orçamentárias geraria uma crise sem precedentes com riscos de rachaduras na coalizão e ameaças à governabilidade.

Uma fonte do PT, que pediu para não ter o nome citado, disse à ISTOÉ que nada foi combinado entre governo e Flávio Dino, mas que as decisões do STF são como “um presente” para Lula que, sem força para impor maior controle ao orçamento entregue por seu antecessor, não tomaria a iniciativa de cutucar o Legislativo.

O montante de recursos geridos pelo Congresso este é ano é mais de cinco vezes superior ao que o governo acatava em emendas há dez anos, quando não havia proposições impositivas, Orçamento secreto ou PIX e, mesmo com uma previsão de R$ 10 bilhões em 2014, ainda era alvo de frequentes contingenciamentos.

Dino arranjou encrenca grossa com o Congresso, mas conta com apoio da sociedade civil que, alheia à repercussão política da queda de braços, vê avanços nas decisões por transparência.

O procurador de Justiça, Roberto Levianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, pediu para entrar como amicus curiae nas ações que tramitam no STF por entender que há um movimento no Congresso para restringir a legitimidade de propostas que buscam esclarecer o destino dos recursos públicos, o que, na sua opinião, “enfraquece a democracia e o sistema republicano”. O procurador diz que este ano, por conta das alegadas urgências de votação, as comissões temáticas podem deixar de debater mais de 400 temas relevantes, todos decididos apenas pelo colégio de líderes antes da votação em plenário.

“As emendas viraram uma caixa preta. Não é possível que tenhamos ainda cheque em branco com o dinheiro público. A rastreabilidade e a exigência prévia de que as emendas estejam vinculadas a uma finalidade determinada é um direito fundamental da sociedade. Estamos falando de Orçamento público, que não cabe ao Congresso gerir. É uma subversão do sistema republicano que afeta a separação dos poderes”.

Levianu diz que o número de parlamentares que adotam critérios de prioridade social na destinação das emendas gira em torno de 2%, o que demonstra que a relação com o orçamento é um clientelismo a céu aberto. “O dinheiro vai para os rincões que mantém o parlamentar no poder. Ele só manda o dinheiro para onde tem voto, mesmo que não haja necessidade social pelo dinheiro público. É a perpetuação no poder”.

Se a decisão de Dino forçar um acordo que resulte num acordo que dê transparência ao dinheiro do orçamento, diz o procurador, o país sairá ganhando.