Editorial

Rebeca lava nossa alma!

Crédito:  Rodolfo Buhrer/AGIF/AFP

Carlos José Marques: "Rebeca demonstra cabalmente que é preciso dar chances à nossa juventude" (Crédito: Rodolfo Buhrer/AGIF/AFP)

Por Carlos José Marques

Há anos, algumas décadas na verdade, o Brasil vem passando carente de heróis. No plano dos desportistas em especial, desde Ayrton Senna – como lembrou a própria Rebeca Andrade, nossa nova garota de ouro no podium – não surgiam nomes de peso a nos orgulhar. O País andava capenga nas competições, sem grandes estrelas para quem torcer ou exemplos a seguir, faltando referências inegáveis no plano global. No futebol, primamos mais pelas excentricidades de atletas com pendor marqueteiro e traços de deslumbramento com a vida de luxo, para além da exaltação do talento ou de qualquer outra coisa. Na edição parisiense da Olimpíada, Rebeca lavou a alma nacional, transbordou emoção e brios extraordinários. Mulher, negra, humilde, simpática e de uma precisão milimétrica, quase infalível, ela se tornou a maior medalhista olímpica do País. Não é pouca coisa. Sinaliza, dentre outros aspectos, o empoderamento feminino que, em terras francesas, teve também como destaque a conquista de outra excepcional brasileira, Beatriz Souza, a “Bia”, judoca de ouro da modalidade. Rebeca à frente da consagração verde e amarela nos trouxe de volta o entusiasmo pela torcida genuína, reconfortante, patriótica no melhor sentido, fora do oportunismo tacanho de certos políticos rasteiros. Rebeca é hoje o retrato mais bem-acabado da representatividade brasileira, e garantiu seu lugar na história. Com a bandeira tremulando às costas, foi reverenciada de joelhos por outras duas deusas da modalidade. Simone Biles, a americana que nunca erra, chegou a admitir que não aguentava mais disputar espaço com Rebeca, tê-la como rival a bater. E dessa vez, ela, Biles, tida como alguém de outro planeta, piscou ante o esplendor da apresentação de Rebeca. Para a glória e felicidade dos brasileiros que lançavam todas as suas fichas e orações sobre a nossa garota prodígio dos trópicos. Ela não decepciona. De uma frieza típica dos atletas fenomenais, levou aos píncaros da sagração a ginástica brasileira. Depois de um injusto quarto lugar nas traves, por decisão controversa dos árbitros, ela deu o troco e em alto nível mostrou a que veio. Cravava sua sexta medalha no peito, a segunda de ouro. Nenhum outro brasileiro jamais havia logrado esse feito.

Nascida na periferia de São Paulo, em Guarulhos, Rebeca trouxe consigo, desde sempre, a marca da superação. E é por isso que seu legado, acima de tudo, pode ser traduzido pela esperança e garra de um povo que não desiste. Retrato síntese de nossa sociedade, ainda figura como exceção à regra por tudo que conseguiu. Obstinada, provou que o talento merece oportunidades. Eis a palavra-chave, em todas as áreas de atividades: oportunidade. Tem de ir além do estímulo pontual e eventual. Rebeca demonstra cabalmente que é preciso dar chances à nossa juventude. O retorno pode ser multiplicado por milhares de meninas e meninos “Rebeca” – uma expressão, digamos, que pode a partir de agora virar neologismo como sinônimo de determinação.

O investimento em seu nome (e não foi muito) gerou inúmeras conquistas para além de resultados na quadra, também no campo social, afetando de maneira profunda a trajetória de outros aspirantes que nela se espelham. Criada por mãe solo, a multicampeã é de uma família com outros seis irmãos. Começou a treinar em um projeto social, levada por uma tia funcionária pública, seguindo na garupa da bicicleta do irmão ou a pé ao lado dele. O pai saiu de casa e sua mãe sustentou a todos como servidora doméstica. O triunfo de Rebeca, dentro de uma trajetória de sacrifícios como a de milhões de seus conterrâneos, exprime uma mensagem de luta por ideal que inspira, cria ânimo, transcende o próprio feito, gera sensação de pertencimento, orgulho de nascer e viver na mesma terra que ela, de vestir a mesma camisa e empunhar a mesma bandeira. O Estado brasileiro, com seu programa Bolsa Atleta, ainda é uma gota d’água no oceano para mudar rumos. É preciso, de maneira vital, o engajamento cada vez maior da iniciativa privada nesse processo — sem o qual o Brasil viverá de casos isolados como o de Rebeca. Que não apenas patrocínio, mas apoio à educação e à formação de todas as gerações vire padrão em busca de justiça social nesse País rotineiramente desigual. Ao cantar o Hino Nacional a plenos pulmões, Rebeca deu a sua mostra de patriotismo no mais puro sentido do sentimento. Inscreveu seu nome no Olimpo do esporte, alcançou o topo, o apogeu da glória. Que sua arrebatadora demonstração de que é possível chegar lá tome o coração e espírito de cada um de nós.