Brasil

O agro ataca e tensiona o campo

Com seguranças armados, fazendeiros atacam indígenas, montam acampamento para barrar retomada das terras e agravam as tensões no campo: STF debate marco temporal

Crédito: Gustavo Moreno

Luiz Roberto Barroso e Gilmar Mendes (STF) fazem contorcionismo para mudar decisão do colegiado que rejeitou o marco temporal, imposto por decisão do Congresso em desafio (Crédito: Gustavo Moreno)

Por Vasconcelo Quadros

Arrastado para o centro do conflito entre índios e fazendeiros, acuado pela bancada ruralista e criticado por parceiros históricos que gravitam nos movimentos sociais por ter paralisado as demarcações prometidas, o governo Lula 3 corre o risco de ver naufragar sua política indigenista e ainda passar por um fiasco como sede da COP 30, o maior evento de clima e meio ambiente da ONU, que ocorrerá em Belém no ano que vem.

Enquanto os chefes dos Poderes da República se perdem numa discussão sem fim para desatar o nó do imbróglio do marco temporal que eles mesmos criaram, os ânimos se acirram nas áreas em disputa e os conflitos armados pipocam em várias regiões do país.
O confronto que terminou com dez índios Guarani-Kaiowá feridos a bala, no fim da semana passada em Douradina (MS), foi a consumação de um roteiro anunciado.
A região tem sete áreas retomadas pelos índios, mas em todo o estado chegam próximo a 150 as fazendas ocupadas, metade do número reivindicado pelos indígenas.
A tensão também toma conta de Guairá (PR) e Pontão (RS), mas a demanda reprimida é ainda maior: o conflito envolve 23 estados, onde levantamento da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) estima que chegam a mais de nove milhões de hectares delimitada como terras indígenas, sobrepostas a mais de dez mil propriedades rurais que, se forem requisitadas pelo governo com indenização, exigiriam cerca de R$ 200 bilhões para pagar agricultores pela terra nua e benfeitorias.

Não foi o governo Lula quem criou esse cenário explosivo. As disputas se acumulam há mais de 20 anos, mas se agravaram durante o mandato de Jair Bolsonaro, que não só cumpriu à risca a promessa de não demarcar um centímetro de terra aos povos originários, como abriu as porteiras para grilagens, invasões, garimpos e exploração ilegal de madeira em áreas indígenas e unidades de conservação, especialmente na Amazônia.

A região será mostrada ao mundo por Lula na conferência do clima (COP 30) do ano que vem como o ecossistema que mais abriga etnias, 16 delas povos isolados que nunca tiveram contado com a civilização.

Na segunda, 5, o Supremo Tribunal Federal realizou a primeira de uma série de audiências convocadas para rediscutir o marco temporal, polêmica aberta há um ano quando a Corte decidiu que é inconstitucional estabelecer um tempo preciso para balizar demarcação de territórios que já foram áreas de ocupação indígena.

Uma invenção da bancada ruralista no Congresso, que quis se aproveitar de um parâmetro usado pelo STF especificamente no caso da homologação da reserva Raposa/Serra do Sol, em Roraima, em 2005, o marco entrou num verdadeiro vaivém: o Congresso criou uma nova lei para enfrentar o STF, o governo vetou, mas os dois Poderes acabaram vencidos pelos parlamentares, que derrubaram o veto e impuseram o limite de ocupação até 1988 para fins demarcatórios.

O problema é que lei entrou num limbo e, diante de certa omissão do STF, que deve refazer sua própria decisão, o que gerou insegurança jurídica e que alimenta os conflitos.

Só em Douradina dez indígenas foram feridos em ataques deflagrados por fazendeiros; enquanto a falta de uma definição sobre o marco temporal agrava tensão no campo (Crédito:Divulgação )
(Divulgação)

A situação mais tensa atualmente é mesmo Douradina, onde dezenas de fazendeiros, em suas grandes caminhonetes, com seguranças armados abordo, montaram acampamento a poucos metros de onde estão os índios. Entre os ruralistas, há duas certezas, segundo disse à IstoÉ o presidente da Federação da Agricultura de Mato Grosso do Sul, Marcelo Bertoni, designado pela CNA para acompanhar os debates no STF.

A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara esteve na área do conflito, conversou com fazendeiros, entidades e o governador Eduardo Riedel em busca de diálogo que evite o agravamento da violência, mas admitiu que sem a presença permanente e firme da Força Nacional os riscos são latentes. No STF as audiências de conciliação prosseguem até dezembro e, sob a coordenação do ministro Gilmar Mendes, buscam entendimento. Ao perceber que o STF pode mudar sua própria decisão para atender fazendeiros, o coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Maurício Terena, alertou que a eventual manutenção da lei como está interrompe demarcações e vai aumentar a insegurança e os conflitos. A decisão final será do plenário do STF.