Comportamento

Fechando a fábrica: por que cada vez mais brasileiros não querem filhos

Cirurgias de esterilização explodem no Brasil e, com flexibilização de exigências, passam a acontecer cada vez mais cedo. Com isso, população envelhece e tendência é que idade de aposentadoria aumente nas próximas décadas

Crédito: Fabio Cordeiro

Bruna Maia decidiu ainda criança e transformou a opção em livro (Crédito: Fabio Cordeiro)

Por Luiz Cesar Pimentel

Na obra-prima Memórias Póstumas de Brás Cubas, o escritor Machado de Assis tornou lapidar frase de seu narrador-defunto protagonista da história: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. O próprio autor deu pista de que compactuava com a filosofia, já que ele e a mulher, a portuguesa Carolina Augusta de Novais, optaram por não deixarem descendentes. Mas os 143 anos que nos separam da publicação do romance não tornaram arcaica a ideia nem o formato de casamento sem prole. Pelo contrário.

Nos últimos anos a quantidade de brasileiros que optam por cirurgias de fertilização cresceu ao ponto de no ano passado as laqueaduras darem salto de 80% entre as mulheres e as vasectomias, de 40%, entre os homens, segundo o Ministério da Saúde. E se o número de casais no País que não queriam ter herdeiros era de 13% na virada do milênio, atualmente quase dobrou, para 20%. Motivos para a decisão não faltam, segundo os adeptos.

O grande acelerador para a tomada de decisão de uma vida sem bebês foi a flexibilização das regras de esterilização.
Até março de 2023, as exigências para a cirurgia eram ter pelo menos 25 anos, consentimento da mulher ou marido ou já ter ao menos dois filhos.
A idade mínima baixou para 21 anos e não é mais obrigatória a autorização da companheira ou companheiro.
Menores de 21 anos que tenham dois ou mais filhos também passaram a ser autorizados, além de a laqueadura ter sido permitida durante o parto e não mais com o mínimo de 60 dias posteriores.

 

(Divulgação)

Assim, o número de intervenções pulou de 54.222 em 2022 para 98.019 no ano passado entre mulheres e de 67.689 para 95.209 entre homens. “Se a flexibilização tivesse saído antes, eu teria feito não aos 33, mas aos 21, pois já naquela idade eu tinha muita certeza”, diz a escritora e artista plástica Bruna Maia, que escreveu o auto-explicativo Não quero ter filhos e ninguém tem nada com isso, coletânea de 20 histórias reais sobre o tema.

80% aumentaram as cirurgias de laqueadura desde que a legislação flexibilizou as exigências

O que antes era tabu virou motivo para certa ostentação nas redes sociais. Com o crescimento do número de adeptos, casais sem filhos começaram a usar o Instagram para propagandear a vida isenta das responsabilidades que um bebê traz. Como a tendência de redução de parentalidade não é uma jabuticaba, mas fenômeno global, os pares que gostam de exibir os sorrisos despreocupados foram cunhados de dink, um acrônimo de double income, no kids (algo como dupla renda, sem filhos).

Ângelo Dias já foi casado, namorava e dividiu com a companheira à época a decisão (Crédito:Marco Ankosqui)

Pesquisa com os dinks aponta que 70% desses juram que não se arrependerão da decisão no futuro, a maioria motivada pela preocupação financeira de sustentar uma família.

É o caso de Ângelo Dias, que fez vasectomia. “Pensava em ter filhos durante a adolescência, mas ao entender melhor as consequências do ato — e me deparar com o custo das coisas, depois que saí de casa — decidi que isso não faria parte da minha vida”, diz. “Quando fiz a opção pela cirurgia, estava namorando, porém nem eu nem minha parceira tínhamos planos de ter filhos. Todas as minhas relações já tinham isso como ponto pacífico: se a pessoa tivesse vontade de filhos, não seria comigo.”

No caso, houve o agravante do falecimento do pai e madrasta em acidente, que deixaram ele, o irmão um ano mais novo e mais dois gêmeos, que tinham 6 anos na ocasião da fatalidade, em 2017.

Outro fator que tem motivado as pessoas a não procriarem é a saúde mental, por diferentes razões. A cientista social Janaina Carvalho decidiu que faria a cirurgia aos 23 anos, antes de a legislação mudar, e há dois meses fez a chamada ligadura de trompas. “Tenho depressão crônica, a chance de eu ter um quadro pós parto é muito grande. Ou seja, gerar uma criança é um risco enorme para a minha saúde mental, que já não é das melhores”, conta. “Além de ter tido consciência da responsabilidade que seria cuidar de uma criança e percebido não ter essa responsabilidade, nem maturidade.”

Também foi um reforço na decisão de Bruna Maia. “Tenho transtorno afetivo bipolar tipo 2 e manifestava uma melancolia muito grande. Depois que parei de tomar pílula (anticoncepcional), percebi que melhorei muito. Só que o medo de engravidar em um País que não tem aborto legal fazia com que tomasse, o que agravava os sintomas”, diz.

(Divulgação)

“Caso mude de ideia, adotar será melhor do que gerar uma criança.”
Janaina Carvalho, cientista social, fez laqueadura aos 26 anos

O fator “esperar a hora certa para ter um filho” contribui para a conta cirúrgica. Se bem que com valores baixos. “Para os homens com vasectomia, cerca de 10% deles congelam (espermatozóides)por este motivo”, diz Edson Borges Jr., diretor-médico do grupo de fertilização assistida FertGroup. “A mudança na lei foi importante para a garantia de acesso aos direitos sexuais e reprodutivos de forma livre e responsável, sobre quantos filhos as mulheres desejam e em que momento”, completa a ginecologista e cirurgiã Émile Almeida.

Sem descanso

O número inversamente proporcional aos apresentados até agora é o de crescimento populacional no País.
Com o Censo de 2022 veio a constatação de que a população brasileira apresenta a menor taxa de aumento desde que o recenseamento foi criado, em 1872 — entre 2010 e 2022 a população aumentou 6,5%, o que representa uma taxa positiva de apenas 0,52% ao ano.
Ao serem projetadas as linhas de pessoas que entram no mercado de trabalho e de outras que se aposentam, o cruzamento mais perigoso deve acontecer em 2035, quando o número de aposentados superará o de profissionais ativos, com consequências perigosas para a previdência social.
Na década de 1980, o País contabilizava nove trabalhadores ativos para cada aposentado; hoje, são 4,5 para cada, exatamente a metade.
Atualmente 15,8% dos brasileiros possuem mais de 60 anos; no ritmo atual, em 2060 serão 25,5% da população.
Sem contar que o Banco Mundial acaba de divulgar estudo que aponta que se as regras para aposentadorias não mudarem no Brasil, a idade mínima para se deixar de trabalhar será de 72 anos em 2040, e 78 anos em 2060.

A mudança por onde deve começar a prevenção diz respeito ao etarismo no mercado de trabalho. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), realizada pelo IBGE, os idosos são o grupo com menor participação profissional. Há 12 anos, o percentual de trabalhadores ativos na faixa etária era de 5,9%. Em 2018, passaram a 7,2%, só que o índice de desemprego mais que dobrou, de 18,5% para 40,3%, com o agravante de que somente 27% trabalhavam no mercado formal e 45% por conta própria, o que faz com que a contribuição para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS) não atinja nem o mínimo necessário para evitar rombo nas contas públicas. “Nunca tive essa vontade de passar meus genes para frente nem de colocar mais gente nesse mundo que não parece ter muita chance de melhorar… Se (a paternidade) fosse uma startup, não conseguiria investimento, já que é uma empreitada com muito risco em um ambiente extremamente hostil”, faz a analogia com o mundo corporativo o programador Ângelo Dias.

As exigências diminuíram, mas a cirurgia de esterilização demanda ainda algumas etapas prévias à realização. Em relação ao sistema público, o primeiro passo é visitar uma Unidade Básica de Saúde (UBS), onde há o encaminhamento para ambulatório de planejamento familiar. Profissionais passam a acompanhar o caso para garantir a convicção do paciente, que tem que assinar uma série de documentos e realizar exames para descartar a hipótese de transtorno psicológico que enfraqueça a capacidade de decisão.

Tanto homens quanto mulheres passam por 60 dias de reflexão desde a busca até a realização do procedimento, já que o Sistema Único de Saúde (SUS) não oferece a cirurgia de reversão, em caso de arrependimento. Todos os estados brasileiros possuem unidades para a realização dos procedimentos. Além das cirurgias, o DIU é um método seguro, de longa duração e fácil reversão disponível nos postos públicos.

Outros métodos à disposição são: anticoncepcional injetável, diafragma e pílula anticoncepcional de emergência (ou pílula do dia seguinte), além de preservativos.