Geral

As rainhas do Brasil: o talento e o carisma das brasileiras na Olimpíada de Paris

Crédito:  Dan Mullan/AFP

A reverência das americanas Simone Biles e Jordan Chiles para Rebeca Andrade: a brasileira mostrou excelência, simpatia e determinação (Crédito: Dan Mullan/AFP)

Por Denise Mirás, de Paris

RESUMO

• Desempenho excepcional de Rebeca Andrade nos Jogos atrai novos aspirantes a atletas e abre caminho para futuro ainda mais vitorioso do esporte
• A expectativa é de novos investimentos, patrocínios e talentos
• Mulheres formam 60% da delegação do País e são as grandes ganhadoras de medalhas em Paris

O incrível em Rebeca Andrade, a nova heroína do Brasil, nem é seu talento, que arrasta milhões de seguidores pelas redes sociais. Ou a dedicação e o foco que a consagraram como maior medalhista brasileira, com seis, e uma das melhores ginastas do mundo em toda a História. Também nela está a determinação e a resiliência para superar as dificuldades financeiras e a insuficiência de apoio no início da trajetória e três cirurgias no joelho direito, para seguir praticando os saltos, malabarismos, passos e danças do seu esporte. Mas talvez a maior grandeza da atleta, que cativa “extraterrestres” como a americana Simone Biles, derrotada por ela no solo em Paris 2024, e que tornou-se fã, esteja no coração. Ao declarar que testemunhar a felicidade do técnico Francisco Porath, o Xico, de familiares e amigos é “tão importante” quanto conquistar pódios, mostra como pavimentou o caminho para se estabelecer entre os deuses olímpicos.

Desde Tóquio 2020, a leveza e a admiração pelas adversárias, entre as próprias ginastas, transformaram a fachada de um esporte e arrebataram ainda mais fãs por todo o planeta. Da mesma forma que a skatista Rayssa Leal, a “Fadinha”, a alma de Rebeca transborda no sorriso. O desempenho espetacular nos últimos anos é promessa de dias ainda melhores para o esporte brasileiro no futuro. Atrai seguidores para a ginástica, fortalece o mercado esportivo, incentiva novos investimentos e patrocínios na base e na elite e impulsiona a formação de novos talentos.

“Lindo esse momento de irmandade e espírito esportivo! Parabéns Rebeca, Jordan e Simone”, rendeu-se a ex-primeira-dama americana Michele Obama, nas redes sociais, à foto de abertura dessa reportagem. “Rebeca é incrível. Uma rainha. Decidimos demonstrar nosso respeito. Era o correto a ser feito. Eu a amo”, derreteu-se a própria Simone.

“Lindo esse momento de irmandade e espírito esportivo! Parabéns Rebeca, Jordan e Simone”, disse Michele Obama, ex-primeira-dama dos EUA (Crédito: Alexandre Loureiro/COB)

ISTOÉ acompanhou Rebeca no espaço Casa Brasil, em Paris, na quarta-feira (7). Com tranquilidade, a ginasta vai emendando um assunto no outro. Da confiança nela mesma e em sua equipe, e do “ourozinho que queria tanto”, à emoção por ter completado um ciclo olímpico, quatro anos, sem passar por cirurgias.

Fala de Simone ter percebido o quanto o momento no pódio do solo, com Rebeca no alto e a também americana Jordan Chiles no degrau do bronze, primeiro com três mulheres negras em Jogos, era importante para a brasileira e ter sido generosa na reverência à campeã.

Do assombro pelas celebridades mundiais que agora a seguem nas redes sociais. Do orgulho por Rosa, mãe branca, ter criado oito filhos pretos com ela e da importância de crianças brasileiras não desistirem dos sonhos mesmo diante de dificuldades. E também do apoio de programas como a Bolsa Atleta e da segurança conquistada para sua família, que deixa de ser motivo de preocupação. Da mesma forma que responde ser estrogonofe de frango o prato predileto, admite que hoje está “grandona”, no topo do mundo, “fazendo o que nasci para fazer”.

A skatista Rayssa Leal, que desembarcou nos Jogos com 40 patrocinadores, conquistou o bronze (Crédito:Julian Finney)
(Rodolfo Buhrer)

Paulista de Guarulhos, 25 anos, 1,65m e 55 quilos, Rebeca conquistou quatro medalhas na capital francesa: ouro no solo, prata no individual geral e no salto e bronze por equipes — que se somaram ao ouro no salto e à prata no individual geral em Tóquio 2020. Entre a chegada e o encerramento da competição, ela saltou de três milhões de seguidores para mais de nove milhões. É o mesmo patamar da “Fadinha” Rayssa, bronze no street do skate, que arrastou a Paris 40 patrocinadores, entre fixos e pontuais, e de Simone. O duelo com a americana fez do Comitê Olímpico do Brasil o mais seguido do mundo, ultrapassando o Team USA.

Foi assim também com a judoca Bia Souza, primeira a garantir ouro para o Brasil (na categoria +78kg), que teve um salto absurdamente expressivo: dos pouco mais de 50 mil seguidores, passou a 2,2 milhões após apelo da Cazé TV. Como sentiram as outras ginastas da equipe de bronze (Jade Barbosa, Lorrane Oliveira, Flavia Saraiva e Julia Soares), a boxeadora Bia Ferreira (bronze até 60kg), Tatiana Weston-Webb, prata no surfe, a judoca Rafaela Silva (até 57kg), decisiva também no bronze por equipes, e as garotas do futebol feminino. E mesmo Valdileia Martins, com a incrível história de começar a prática do salto com vara (de pesca) e colchão (de palha de arroz) em um assentamento do MST, até chegar a uma final olímpica em Paris.

O ouro de Bia Souza (abaixo) e o bronze de Larissa Pimenta, ambas do judô, não eram esperados pelos especialistas

(Rafael Bello/COB)
(Hiroto Sekiguchi)
(Miriam Jeske/COB)

Início do apoio

No feminino ou no masculino, os nomes de ponta foram formados a partir de organizações sociais que receberam verbas federais ou passaram pelo Bolsa Atleta, implantado em 2005 pelo então secretario nacional de Alto Rendimento do Ministério do Esporte, o nadador Djan Madruga.

O programa foi reforçado pelo substituto Ricardo Leyser, que promoveu, em 2009, o Bolsa Pódio, para quem estivesse entre os 20 melhores do ranking mundial, com salário de R$ 15 mil pago aos mais bem colocados.

Era apenas parte do plano Brasil Medalhas, que incluiu melhoria de infra-estrutura, equipes multidisciplinares, viagens de intercâmbio e competições, compra de equipamentos e criação de pistas de atletismo em universidades e centros esportivos, esta em parceria com prefeituras. Confederações de esportes coletivos receberam patrocínio de empresas públicas federais como Caixa, Petrobrás, Correios e Banco do Brasil. São Paulo levantou, com verba federal e parte estadual, um moderníssimo Centro Paralímpico, entre os tops do mundo.

O esporte tem três grandes fontes de financiamento do governo federal: a Lei Agnelo/Piva, que destina um percentual da arrecadação das loterias aos comitês olímpico e paralímpico, o programa Bolsa Atleta e a Lei de Incentivo ao Esporte (LIE), por renúncia fiscal.

Um estudo do Instituto de Pesquisa Inteligência Esportiva, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), mostra que os investimentos levaram o Brasil a somar, a partir de 2004, nos Jogos de Atenas, 267 medalhas em cinco Olimpíadas, 150% a mais que nas oito edições anteriores.

• Os patrocínios privados chegaram a R$ 60 milhões em 2023 e, em 24 anos de lei Agnelo/Piva, as loterias repassaram R$ 17,42 bilhões, equivalentes a 80% dos recursos gerais do esporte brasileiro.

Outra fonte é o Bolsa Atleta, que envolve 350 contemplados. A Pódio, valor mais alto, paga hoje pouco mais de R$ 16 mil mensais. A LIE aportou R$ 5,49 bilhões desde 2007.

(William Lucas/COB)

Assim, um representante do Brasil que chega ao nível olímpico conta hoje com recursos federais e projetos de governos estaduais e prefeituras, mas ainda falta continuidade no caso de programas para que atletas na faixa de 15 e 16 anos recebam apoio. E também integração, como acrescenta Leyser, no caso de projetos sociais como o programa Segundo Tempo (no contraturno escolar), que chegou a ter quatro milhões de crianças em escolas e instalações das Forças Armadas.

“É preciso retomar a política esportiva nacional, massacrada no governo Bolsonaro. A partir dela se constrói a base para o surgimento de novos talentos. Faz muita falta”, diz Leyser. “Poderíamos ter duas ou três gerações bem trabalhadas, na faixa dos 19, 20 anos, apresentando resultados expressivos e consistentes”, acrescenta.

Filha de brasileira e britânico nascida em Porto Alegre e criada nos EUA, Tati levou prata (Crédito:Willian Lucas/COB)

Com relação a um projeto nacional efetivo para iniciação de crianças e a prospecção de talentos, o Brasil está ainda mais atrasado, à mercê de iniciativas pontuais. Em países classificados como potências esportivas, o natural são pólos de iniciação abertos à garotada, em centros públicos e escolas.

Aqui, é precária a estrutura para meninos e meninas que buscam opções para a prática esportiva — sobretudo as vindas de famílias de baixa renda, que precisam arcar com sacrifícios para que suas crianças acompanhem a rotina de treinamentos. Adolescentes que conseguem vencer essa “arrebentação” tem chances bem maiores de aproveitar as ondas de patrocínio público e privado e viver do esporte, caso cheguem ao alto nível, realidade atual de Rebeca e Rayssa.

Após início ruim, Seleção feminina de futebol venceu a Espanha com atuação de gala, garantiu medalha e vaga na final (Crédito:Julio Cortez)
(Clive Mason)

Domínio feminino

Nesta Olimpíada, onde finalmente se equipararam os números de mulheres e homens atletas, e brilham as medalhas femininas, sobretudo nas conquistas brasileiras, Rebeca e sua história refletem dados publicados pelo IBGE. Dos 203 milhões da população — que pela primeira vez se reconhece de maioria parda, com 45,3% do total —, 51,5% são mulheres. Pela Síntese de Indicadores Sociais, dos 12,7 milhões de brasileiros na extrema pobreza, e 67,8 milhões na pobreza, nada menos que 81,6% estão em famílias chefiadas por mulheres. Em Paris, elas fazem bonito. Conquistaram mais de 70% das medalhas brasileiras.

Rosa Braga, a mãe de Rebeca, vivia essa situação quando a filha, quinta da escadinha de oito, foi levada a um ginásio de Guarulhos por uma tia, Maria Aparecida, cozinheira, então cozinheira do local, e iniciou sua trajetória (leia quadro). Aos dez anos, a garota seguiu para o Centro de Excelência em Ginástica do Paraná (Cegin), construído pelo governo estadual na virada de milênio, quando COB e confederações contratavam treinadores estrangeiros de medalhistas olímpicos. O técnico ucraniano Oleg Ostapenko, que treinou também Daiane dos Santos, passou a cuidar da promessa.

O Cegin é um dos locais que conseguiu dar sequência ao trabalho de formação de ginastas para alto rendimento, como prova Julia Soares, 18 anos, a caçula do bronze da ginástica artística em Paris, que tem Rebeca como espelho fundamental. Como se percebe, a meta continua a ser a conquista do equilíbrio de investimentos, incentivos e estrutura de formação entre crianças e jovens que ainda não atravessaram a “arrebentação” e atletas que são realidade. Aí o País terá, em quantidades maiores, novas Rayssas, Bias e, sobretudo, Rebecas, a nova rainha do Brasil.

Onde tudo começou

Força muscular, foco, autoconfiança e consciência corporal privilegiada. Eis a fórmula do sucesso de Rebeca Andrade, levada aos cinco anos à técnica Mônica Barroso dos Anjos, de um ginásio de Guarulhos, por uma tia ex-cozinheira do local

“Uma espoletinha.” Assim a técnica e árbitra de ginástica artística Mônica Barroso dos Anjos define Rebeca Andrade. Ela a conheceu com cinco anos, no Ginásio Municipal Bonifácio Cardoso, em Guarulhos. A musculatura, a inquietação e a flexibilidade da menina logo chamaram atenção. Júnior Fagundes, responsável por treinar a ginasta por um ano, ressalta que ela é “excepcional” e “blindada emocionalmente”. A consciência que Rebeca tem de seu corpo no espaço é o que a torna tão especial, diz ele.

(Rogério Albuquerque)

Assim como seus músculos, a estrutura emocional foi construída desde a infância. “É um desafio treinar crianças tão pequenas”, afirma a psicóloga Cinthia Baeza, que trabalhou com a medalhista por um ano e meio. “Elas precisam de apoio individual e coletivo para seguir com os treinos, pois lidam com exigências muito grandes.”

Rebeca e Mônica em foto na parede do ginásio onde a ginasta começou e (mais acima) o treinamento da promessa Lavínia Freire (Crédito:Rogério Albuquerque)

O fenômeno Rebeca Andrade fez com que triplicasse a procura pelas aulas no ginásio. Foram preenchidas 450 vagas em agosto, há fila de espera e o telefone não para de tocar. Ali são identificados novos talentos. Um deles é Lavínia Freire, onze anos, que quer ser como Rebeca. Mônica garante que ela possui condições de realizar o sonho. “Tem boa postura corporal, flexibilidade e amplitude”.

E determinação de sobra, segundo a mãe, Edjane. No armário do quarto, Lavínia colou um papel com sua lista de desejos: ir para Rio treinar no Flamengo, clube que abriga Rebeca, trabalhar como técnica e conhecer a brasileira e a americana Simone Biles.(Maria Ligia Pagenotto)

(Jarina Ziehe/COB; MOHD RASFAN/AFP; MICHAEL STEELE/AFP; divulgação; Oli SCARFF/AFP; paris 2024)