Brasil

O lobby nos direitos humanos

Bombardeado por entidades do setor pela excessiva demora na consolidação de anistia a perseguidos, o ministro Silvio Almeida vive seu inferno astral, mas se segura no cargo com apoio de advogados ligados ao PT

Crédito: Rafael Vieira

Críticos afirmam que o ministro tem discurso, mas pouco preparo para os desafios que os direitos humanos exigem (Crédito: Rafael Vieira)

Por Vasconcelo Quadros

Ruim de jogo político, mas bom de briga, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Luiz de Almeida, é um alvo permanente de fogo amigo e rejeitado por boa parte das entidades que gravitam em torno da pasta que dirige, mas tornou-se um intocável na Esplanada, em Brasília. No ano passado ele desafiou o poder da primeira dama da República e, sem titubear, demitiu o secretário nacional da Criança e do Adolescente, o advogado Ariel Castro Alves, que é amigo de Janja e da filha do presidente Lula, Lurian. Por discordarem do estilo do ministro e da pouca efetividade na execução das políticas de direitos humanos, outros quatro secretários deixaram a pasta. Na quarta-feira, 31, pipocaram mais protestos em frente ao ministério pedindo que ele assine as portarias de deferimento de anistia paralisadas em seu gabinete. Uma ativista histórica, Rosa Cimiana, chegou a divulgar uma carta aberta ao presidente criticando a letargia da pasta e chamando o ministro de “inexperiente, arrogante e autoritário” por, supostamente, mandar impedir manifestações.

A gestão de Almeida patina na concessão de anistia a perseguidos políticos e até agora não apresentou orçamento nem meta sobre a busca de desaparecidos políticos — os dois temas que sempre estiveram como prioridades na órbita do MDHC. Ainda assim segue firme.

No mês passado ele deixou uma pista do segredo que o garante no cargo: publicou um artigo no jornal O Globo e assinou o texto junto com o advogado Walfrido Warde, dono de uma das mais importantes bancas do país, a Warde Advogados, e presidente do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresas (IREE), entidade composta por uma constelação de políticos que vão do ex-ministro petista Tarso Genro ao general Sérgio Etchegoyen, ex-chefe do GSI no governo Michel Temer.

• O IREE exerce forte lobby nos poderes da República.

• Ligado ao PT, Warde não é apenas mais um rosto na política: ele foi o segundo maior doador do PT na campanha presidencial de 2022, com R$ 400 mil, atrás apenas do bilionário Rubens Ometto, dono do Grupo Cosan S/A, que contribuiu com R$ 1 milhão, e à frente de seu parceiro de banca, o advogado Rafael Valim, que contribuiu com R$ 200mil.

• O ministro e o advogado são sócios, amigos e compartilham das mesmas ideias sobre a necessidade de unir direitos humanos à política de segurança pública, tema que, aliás, o ministério só atua pelo desempenho pessoal de Silvio Almeida.

• Na prática não influencia nas ações do governo nem para corrigir a demanda reprimida no sistema carcerário, esta, sim, uma violação de direitos humanos que afeta um terço dos detentos país trancafiados há anos sem julgamento definitivo.

A assessoria de imprensa do ministro disse que não há nada demais em assinar o artigo, mas não explicou se ele ainda mantém vínculo com o escritório. O advogado não atendeu pedido de entrevista.

Doador ao PT, Walfrido é sócio, amigo e comunga com o ministro os ideais do MDHC até em artigos que assinam (Crédito:Roque de Sá)

Movimento negro

Fundador do PT na Baixada Santista e amigo do presidente desde o início dos anos de 1980, ex-vereador de Cubatão, o advogado e jornalista Dojival Vieira, dirigente do coletivo Cidadania, Antirracismo e Direitos Humanos militou com o ministro e se diz surpreso com a meteórica transformação do ex-companheiro. “Ele é desconectado da pauta real, não tem currículo para o setor nem trajetória no movimento negro ou nos direitos humanos. Lula não monta ministério tirando nomes do bolso do colete ou por simpatias pessoais. Só posso concluir que alguma força muita poderosa o sustenta”.

O conflito que resultou na queda de Ariel Castro Alves, filho de um petista histórico do ABC paulista, o professor Luiz Roberto Alves, revela que Silvio Almeida se sentiu enciumado por causa de uma visita de Janja ao gabinete do ex-secretário para discutir política para crianças e adolescentes, tema que o advogado havia incluído no plano de governo de Lula.

Ariel tinha relação mais próxima com Lula, mas ficou amigo da primeira dama durante a campanha. “Janja pediu para ir à minha sala no Ministério. Avisei o ministro, que participou e depois me cobrou dizendo que passei por cima dele. Foi a gota d’água para minha saída”, disse o advogado à ISTOÉ.

Ele afirma que o ministro sempre demonstrou insegurança, não tem preparo político e nem capacidade administrativa para gerir a pasta. Nos dias seguintes, Ariel foi proibido de dar entrevistas e, logo em seguida, exonerado. Fontes do próprio ministério informaram que o caso chegou ao conhecimento de Lula como um constrangimento a Janja, que tem apreço por Ariel, um estudioso de políticas públicas, e jamais criaria uma saia justa para o amigo.

Soube-se então que o ministro tinha padrinho forte. Pragmático, Lula teria alegado a interlocutores que não tomaria a iniciativa de pedir o cargo para não ser acusado de racista caso demitisse um ministro negro. O ministério tem sua versão para a demissão: “Não conseguiu fazer frente aos consideráveis desafios e complexidades da área, nem dar efetividade às políticas públicas”, informou a assessoria em nota.

Demitido supostamente por ciúmes do ministro, Ariel Castro Alves conheceu Janja na campanha de Lula em 2022 (Crédito:Divulgação )

Silvio Almeida chegou ao topo do poder graças a visibilidade que adquiriu ao se envolver em casos como o do homem negro morto em novembro de 2020 por seguranças do Carrefour, em Porto Alegre, o soldador João Alberto Freitas.

Em vez de fortalecer a causa antirracista, a participação do ministro é, no entanto, bombardeada por parte dos movimentos por ter ajudado a transformar a indignação e revolta num colossal acordo de R$ 115 milhões.

Junto com outros integrantes do movimento negro, Silvio Almeida assumiu um cargo no Comitê de Diversidade criado pela companhia francesa para estancar a sangria de desvalorização de suas ações nas bolsas, onde deu cursos e ajudou a colocar de pé a campanha publicitária que tirou a rede da lona.

O lema da gigante francesa foi, para os defensores da causa negra, como um insulto: “Beto Freitas, não vamos esquecer”, apelo que ajudou a empresa a reverter seu baixíssimo conceito de reiteradas violações.

“Como consultor qualificado, Silvio surfou nessa onda como o mais lustroso dos negros que se aliaram ao lobby. Em vez fortalecer a causa, como se fez nos EUA no caso George Floyd, aqui os negros se sentaram à mesa com uma multinacional para fazer um acordo milionário que, ao contrário do que se viu, não recomendaria Silvio Almeida para cargo de ministro”, afirma Dojival Vieira. O ministro informou que o comitê foi extinto em 2021, antes, portanto, de chegar ao MDHC.

Comissão da anistia

Coração do MDHC na reparação às vítimas da ditadura, a Comissão da Anistia é outro foco de desgaste do ministro pela demora no reconhecimento dos julgamentos e, especialmente, por seu gabinete ter tentando cassar prerrogativas do colegiado, que este ano deu início à apreciação dos julgamentos coletivos de perseguição política sem indenização financeira.

Um dos primeiros foi o caso dos índios Krenack, de Minas Gerais, mas são tantas as etnias com direitos violados na ditadura que a presidente da comissão, Eneá Almeida, quer criar uma comissão nacional da verdade indígena. Sempre que reconhece as arbitrariedades do regime militar, a Anistia faz um pedido formal de desculpa em nome do Estado (algo que os militares ainda se recusam) e lista uma série de recomendações que o governo deve adotar como reparação que, no caso indígena é, entre outras, a demarcação de territórios.

O ministro já havia concordado, chegou a publicar uma portaria, mas voltou atrás e, mesmo sendo ele um jurista, decidiu seguir o parecer da assessoria da AGU de seu gabinete e, contra orientação do Ministério Público Federal, permitiu que seus assessores tentassem anular recomendações numa polêmica que ainda não terminou.

O impasse retardou a publicação da decisão sobre o julgamento de arbitrariedade contra uma delegação comercial da China, conhecido como o “Caso dos 9 Chineses”, cujos integrantes, confundidos por espiões, num crasso equívoco da ditadura, foram presos três dias depois do golpe de 1964, torturados e, em flagrante erro judiciário nunca corrigido, condenados no Brasil.

Responsável pelo encaminhamento do caso, o filósofo João Goulart Filho, presidente do PC do B no Distrito Federal, empenhado em reparar o erro histórico e preservar a memória do pai, responsável pelo acordo comercial com a China, tentou tantas vezes convencer o gabinete do ministro a publicar a portaria, mas está jogando a toalha com uma iniciativa que pode constranger o governo brasileiro. “Vou levar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA”, disse ele à ISTOÉ.

O caso é sui generis: os chineses estão anistiados e ao mesmo tempo condenados por um julgamento cujo processo, arquivado no Superior Tribunal Militar, é um erro judiciário que nenhuma autoridade do governo decidiu enfrentar.

A recomendação para que os equívocos sejam corrigidos dormita no gabinete de Silvio Almeida, sem data para ser publicada. Uma fonte do ministério informou que o caso pode até ser submetido a novo julgamento.