Editorial

A inaceitável ditadura

Crédito: Reprodução twitter

Carlos José Marques: "A despeito da postura da maioria das nações que declararam críticas fortes contra o circo de Maduro, o Brasil optou por um silêncio conivente e até compreensão, em virtude da simpatia ideológica que cultiva pelo parceiro" (Crédito: Reprodução twitter)

Por Carlos José Marques

O que acontece na Venezuela por esses dias é o exemplo mais puro e cristalino do que os regimes totalitários são capazes de fazer na supressão dos direitos individuais e da liberdade de escolha de cada cidadão. Foi por pouco, muito pouco, que o Brasil não mergulhou no mesmo e tenebroso destino dos vizinhos por meio do golpe engendrado e quase executado com sucesso pelo séquito de alucinados adoradores do capitão Jair Messias Bolsonaro, aquele que procurou desacreditar urnas em prol de interesses pessoais — deixemos de lado os pendores à esquerda ou à direita, líderes autoritários são na essência talhados na mesma fôrma da tirania, não importando a coloração ideológica. Na terra do ditador Hugo Chávez, que teve a sua estátua derrubada em meio às manifestações, o caudilho sucessor Nicolás Maduro conseguiu e deverá seguir exitoso no intento, em um sobranceiro atrevimento à Lei e às regras democráticas. O mundo assiste atônito, indignado e pesaroso, mas de maneira resiliente, ante ao descalabro. Protesta, não reconhece o resultado, ensaia cobranças em tribunais internacionais, embora descarte sanções. A Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou qualquer aval à tramoia em curso. Faltam-lhe, no entanto, instrumentos eficazes para retaliar. A ONU denunciou prisões irregulares; em 17 estados do País a convulsão dá conta da insatisfação generalizada. E daí? Fica sempre o dito pelo não dito. Maduro armou uma evidente farsa, manipulou o sistema de votos e com a complacência da Justiça Eleitoral local, notoriamente cooptada, se autoproclamou escolhido pela maioria para um terceiro mandato. Vida que segue. Palhaçada com ares de crime, script conhecido. Ao desenhar o simulacro da vitória que na prática não existiu, ele deixou um rastro de mortes, perseguições e violência, algo que ainda continua em voga e que não deve acabar tão cedo. Ao contrário. Foi Maduro mesmo quem falou em banho de sangue e ameaçou todos os considerados inimigos do governo (dele, efetivamente). Centenas de pessoas foram parar atrás das grades ou mortas pela polícia local para abafar resistências. O presidente da Assembleia local pediu a prisão dos adversários Corina Machado e Edmundo Gonzalez e o clima de terror tomou conta. A oposição alegou uma derrota acachapante de Maduro e disse poder oferecer provas de ter angariado ao menos 70% dos votos válidos. Observadores internacionais e embaixadores dos países que colocaram em suspeita a contagem foram sumariamente expulsos da Venezuela, significando na prática um corte de relações diplomáticas. No ar o cheiro de marmelada prevalece. Com receio de perder poder, Maduro oferece um show de arbitrariedades, sem receio das consequências. A escalada repressiva chega a ameaças de invasão da Embaixada Argentina e a sequestros de asilados. A Venezuela queima em meio a escombros da liberdade. Em Caracas, a capital, multidões ocuparam as ruas em uma montagem de apoio cuidadosamente organizada para insinuar apoio à “revolução bolivariana” de Maduro. Nada mais artificial e inverossímil de que essa pseudo adesão aos desmandos oficiais. Maduro corrói as entranhas das esperanças de resgate venezuelano. Seu governo corrupto, opressor e clientelista tomou conta da máquina, destruiu a economia, legou uma hiperinflação descontrolada e encolheu o PIB a números risíveis, três vezes inferior ao que já valeu outrora. Nos comícios, manipulou informações e descaradamente controlou o transporte de eleitores para que apenas simpatizantes seus fossem conduzidos às unidades de votação. Nem assim levou. Entidades internacionais classificaram a suposta vitória de Maduro como “a mais aberrante manipulação eleitoral da história”. Do início ao fim se assistiu ali a uma fraude deplorável. Para a surpresa de ninguém. Desmoronaram as chances de melhoria das condições de vida do povo venezuelano e milhões vão optando pela migração, em fuga contra a miséria. Muitos deles a caminho da fronteira com o Brasil. Nesse aspecto, há a lamentar a total apatia e hesitação de Lula e do Itamaraty, sem qualquer repúdio claro e veemente aos eventos que ali ocorrem. A despeito da postura da maioria das nações que declararam críticas fortes contra o circo de Maduro, o Brasil optou por um silêncio conivente e até compreensão, em virtude da simpatia ideológica que cultiva pelo parceiro. Erro político crasso, que distorce e até macula o protagonismo do País na região. A consagração armada de Maduro ainda deverá gerar muita dor de cabeça por aqui e demonstra cabalmente que ditaduras vão tendo sobrevida apesar dos efeitos deletérios que geram para a humanidade.