Picasso vigiado: como a xenofobia atrapalhou a vida do mestre espanhol
Obra revela os arquivos que a polícia francesa manteve durante décadas sobre o pintor espanhol, acusado de ser anarquista e comunista — e classificado como “estrangeiro suspeito”
Por Felipe Machado
A xenofobia é um sentimento que não escolhe data ou lugar, muito menos seus alvos. É uma realidade nos dias de hoje, mas já era assim no início do século 20. É difícil imaginar um tempo em que a França odiava Pablo Picasso, que hoje tem museus dedicados à sua arte em Paris, Antibes, Vallauris e outras cidades que ficam abarrotadas de turistas e geram milhões de euros ao país todos os anos. Mas já houve dias em que o jovem que chegou de Barcelona em 25 de outubro de 1900 era fichado de maneira pejorativa como “estrangeiro”, em um dossiê alimentado pela polícia parisiense ano a ano, até o final de sua vida.
Os agentes que o vigiavam mantinham nos arquivos uma série de registros:
• interrogatórios,
• autorizações de residência,
• fotos de identidade,
• impressões digitais,
• informações sobre a família e amigos,
• testemunhos e opiniões.
Em nenhum desses documentos há citação a crimes ou delitos, apenas a classificação que o acompanhou durante as décadas que viveu em solo francês: o carimbo de “ESPANHOL”, escrito em letras maiúsculas, prova do estigma que o acompanharia até a morte, em 1973.
As revelações fazem parte de Picasso, o Estrangeiro, livro da historiadora italiana Annie Cohen-Solal. O pintor, que era conhecido pelo número “74.664”, mais tarde ganharia o aposto Fiché S., dado a estrangeiros sob vigilância estatal. Mas por que Picasso despertava tamanha atenção das autoridades? Isso teve início graças à associação com Pierre Mañach, seu primeiro marchand, personagem identificado como anarquista. “Por favor, investigue o mencionado Picasso e descubra suas crenças atuais”, escreveu o chefe de polícia no boletim oficial, ao constatar que trabalhavam juntos.
Embora Picasso viesse a romper relações com Mañach quatro anos depois, acreditando que o negociante o explorava, apesar de ser seu conterrâneo, a polícia não desistiu. Continuaram a acumular um dossiê sobre suas atividades, o que viria a prejudicá-lo em diversas áreas do cotidiano, dificultando contratos de aluguel e a obtenção de outros documentos oficiais.
A investigação continuaria a assombrá-lo por muito tempo — em 1940, sua naturalização foi negada sob o pretexto de que tratava-se de um “estrangeiro suspeito”. No final dos anos 50, Picasso desistiu de se tornar francês, assumindo o status de forasteiro durante toda a vida.
Há arquivos que denunciam a xenofobia a que era submetido, como no trecho em que o policial faz críticas ao pintor durante a Primeira Guerra: “mesmo tendo 30 anos em 1914, ele não prestou nenhum serviço ao nosso país durante o conflito”. Em outro momento, remete a uma associação com os ideais da Revolução Russa: “Mesmo ganhando milhões de francos (investidos, ao que parece, no exterior) e tendo se tornado proprietário de um castelo em Gisors, Picasso manteve suas ideias extremistas, evoluindo em direção ao comunismo”.
O preconceito europeu não ficou restrito à Europa. Nos EUA, a fama de Picasso levou o FBI a lançar sua própria investigação, como parte de um esforço para erradicar o comunismo nos EUA. O artista foi considerado uma “ameaça à segurança nacional” por ninguém menos que J. Edgar Hoover, o autoritário diretor do órgão.
Mais tarde, em 1957, Alfred H. Barr, o fundador do MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York, decidiu não convidá-lo para uma exposição de suas próprias obras, temendo que ele fosse preso.
Picasso nunca recebeu um visto para os EUA. Permaneceu na França, onde morreria 16 anos depois, sem nunca se tornar formalmente cidadão daquele país.