Jogo nos EUA mudou
Por Carlos José Marques
O furacão Kamala Harris parece chegar com força para abalar as entranhas e a soberba do republicano Donald Trump, que até aqui vinha sapateando por antecipação como pretenso vencedor da peleja eleitoral contra o antes rival Joe Biden, agora desistente da corrida. Kamala mostra a que veio. Encara o confronto com provocações no campo das bandeiras conservadoras do bilionário fanfarrão. Lembra o direito da mulher na hora de decidir sobre o aborto. Mete o dedo na ferida dos crimes constitucionais que pesam sobre Trump. É, decerto, uma opositora bem menos relutante e mais convicta que o atual presidente dos EUA em seus derradeiros dias de comando. De tal forma a opção pelo seu nome viu-se bem recebida, que em poucas horas milhões de dólares em contribuições à campanha foram registrados. Kamala é a alternativa que alivia os anseios mais recônditos e aplaca os temores do mundo civilizado. Surge com uma dose considerável de racionalidade na mixórdia de debates rasos verificados nos primeiros movimentos da disputa presidencial. Tudo que os ultraconservadores aliados de Trump não queriam era uma Kamala pela frente. Mulher, negra, 59 anos de idade, representante da Justiça na condição de ex-procuradora, que confronta de igual para igual e aponta o dedo à bandidagem explícita de Trump, embolado com diversos processos. “Sei lidar com criminosos”, trombeteou ela logo na primeira entrevista coletiva após a desistência do parceiro de chapa. Não existem mais dúvidas: uma nova caminhada à Casa Branca teve início e a democrata contará com redondos 100 dias para mostrar serviço. No calor das mudanças, antes mesmo de ter seu nome sacramentado, despontou muito bem, galvanizou as atenções e apoio de quase a totalidade dos quadros do colegiado, em uma exposição de imagem impecável — e receptividade idem. O clima de euforia passou a predominar entre aliados. Kamala é a resposta aos seus apelos por uma alternativa realmente convincente. A narrativa pró-Trump que prevaleceu desde a bala de raspão na orelha do candidato está agora perdendo importância rapidamente. A certeza do momento: os democratas se livraram do peso de um Biden senil e receberam o trunfo de uma Kamala revigorada e sem papas na língua. O sonho de parte dos americanos – praticamente a metade – de implodir com a insanidade trumpista ressurge mais real que nunca. A postura enérgica e proativa de Kamala tem contaminado toda a equipe. Já a misógina e sempre enviesada visão dos machões da extrema direita, tal qual Trump e Bolsonaro professam, diminuindo invariavelmente as mulheres e até delas tripudiando, encontrou uma resposta à altura. Com Kamala, o confronto também terá, pelo visto, ácidos momentos nesta seara. Por aqui o “Bozo” teve de ouvir as palavras de sensatez de Simone Tebet e de Soraya Thronicke. Nas bandas americanas, Kamala promete ser ainda mais estridente nesse aspecto. Com a troca de nomes o seu partido resolveu chutar o balde e a quase irreversível previsão de uma derrota melancólica que contaminava setores estratégicos, inclusive do eleitorado feminino, majoritário nos EUA. Os democratas resolveram bem e devem conseguir, assim, reassumir o protagonismo da disputa, condição que naturalmente seria deles por controlarem atualmente o poder e a máquina em Washington. Para Kamala, colocando incansavelmente na mira o adversário, Trump é um débil protagonista na ala de “trapaceiros e predadores” que precisa ser varrido do controle de seu País. O tom da linguagem que ela usa desde a saída é uma pista de como traçará um comportamento ofensivo e sistemático daqui por diante. Trump, provavelmente, não esperava mais uma oponente à altura de sua verborragia notória. Terá de rever as táticas de fake news e falsas análises habituais diante da ameaça de ser desmentido em público por dados e fatos concretos. Observadores políticos lembram que Kamala será capaz, sim, de lhe esfregar na fuça evidências das suas falcatruas, além de trazer uma bagagem de conhecimento denso como munição para diminuí-lo ao ponto do ridículo. As pendências do republicano na Justiça, e qualquer um ali sabe, não ajudam em nada. Ao contrário. Serão retiradas do fundo da gaveta, onde estavam comodamente guardadas, para o meio do palco e dos holofotes. A palavra de ordem de Kamala: unir os EUA em torno da sensatez e dos bons projetos de Estado. Uma plataforma moderna de medidas vem sendo concluída por seus assessores e em breve será trazida a público. Trump, por sua vez, culpado em 34 acusações de falsificações de registro, condenado por suborno a atriz pornô, com processos por interferência eleitoral, responsabilidade no ataque ao Capitólio e desvio de documentos confidenciais, além de encalacrado legalmente, parece exibir apenas um projeto de governo ultrapassado, beligerante, com retrocessos sociais, políticos e econômicos. Valoriza como mote central de campanha a promessa de criar uma “cortina de ferro” protecionista que pode distanciar os EUA, ainda mais, do restante do mundo, tirando dele parte da liderança hegemônica exercida por décadas até aqui. É válido? Os eleitores darão em breve o veredicto. Agora está, de fato, desenhado no tabuleiro um maniqueísmo claro entre duas opções eleitorais: de um lado a face da modernidade de Kamala e, do outro, a postulação carregada de promessas retrógradas do ogro Trump.