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Kamala Harris pode trazer a democracia de volta ao jogo; conheça suas armas

Crédito: Mandel Ngan/AFP

Kamala Harris: apoios dos Clintons e de dezenas de figuras proeminentes da sociedade e da política americanas (Crédito: Mandel Ngan/AFP)

Por Eduardo Marini e Luiz Cesar Pimentel

RESUMO

• Kamala Harris recebe apoio de todos os pesos pesados do Partido Democrata para concorrer à presidência dos EUA no lugar de Joe Biden
• Doações milionárias começam a jorrar desde que a vice surgiu como opção à desistência do presidente à reeleição
• Pesquisas já dão empate técnico entre ela e Trump
• O ex-presidente republicano sentiu o baque e baixou ainda mais o nível nos discursos de campanha

 

Até 14h46m do domingo (21), no horário de Brasília, a disputa eleitoral americana, a ser resolvida no voto em 5 de novembro, parecia encaminhada para a vitória tranquila, uma barbada, de Donald Trump. Ele surfava na crista da onda das pesquisas, turbinado pelo desempenho sofrível do então rival, o presidente Joe Biden, no primeiro debate, e por ter se colocado, com habilidade midiática, na posição de vítima após o tiro de raspão que levou na orelha em um atentado na Pensilvânia. Mas, naquela hora e minuto, Biden divulgou a carta de desistência da disputa e, imediatamente, o tempo fechou para o republicano.

Bilionário branco, extremista, homofóbico, preconceituoso, condenado pela Justiça, hostil à imigração, Trump terá pela frente tudo o que queria evitar. Esse tudo tem nome e sobrenome: Kamala Harris.
Negra,
59 anos (19 a menos do que ele),
ex-procuradora-geral da Califórnia,
filha de imigrantes,
afiadíssima nos discursos.

A vice-presidente mandou logo o aviso: vai tocar a campanha na base do “procuradora contra o criminoso”. A democracia está de volta ao jogo nos EUA.

“Minha intenção é merecer e ganhar a nomeação. Farei tudo para unir o partido, nossa nação e derrotar Donald Trump com sua agenda de extremismos. Como procuradora, enfrentei perpetradores de todos os tipos: abusadores de mulheres, fraudadores de consumidores e trapaceiros que quebraram as regras para seu próprio benefício. Ouçam-me, portanto, quando digo que conheço tipos como o de Donald Trump.”

Kamala desce do avião Air Force Two com o marido, o advogado Douglas Emhoff, em Delaware, na segunda-feira (22) (Crédito: Erin Schaff)
(Elijah Nouvelage;Evan Vucci;;Loren Elliott;Idrees Mohammed)

Na disputa contra o republicano vingativo, produtor despudorado de notícias falsas e com as costas vergadas por condenações, sem contar as que ainda virão, Kamala é a esperança renovada democrata para manter o assento após a crise surgida com o debate.

Os EUA realizaram 59 eleições presidenciais desde 1789, com 46 eleitos e 13 reeleições.
Apenas oito mulheres negras concorreram, todas após 1965, ano da legalização do voto feminino no país, e por partidos pequenos.
São elas: Charlene Mitchell (1968), Margaret Wright (1976), Lenora Fulani (1988 e 1992), Helen Halyard (1992), Isabell Masters (1992 e 1996), Monica Moorehead (1996, 2000 e 2016), Cynthia McKinney (2008) e Peta Lindsay (2008).

A vice-presidente será a primeira candidata negra de um grande partido. Se for eleita, será o 47º presidente e também a primeira mulher negra a chefiar a maior democracia do mundo. Não por acaso, no site de campanha (kamalaharris.com), há botões para doação de 25, 100, 250 e 5 mil dólares, além do “other” (outro), de escolha de valor. No lugar do botão que seria de 50 dólares está o número 47.

(Carlos Osorio)

“Lunática radical de esquerda, louca que destruirá o país. É a favor de executar bebê.
Quer aborto até o oitavo mês de gravidez.”
Trump, sobre Kamala, em mais um apelo despudorado às fake news

O lema também está pronto: Yes, We Kam, brincadeira com o Yes, We Can (sim, podemos) de Barack Obama com as letras do nome de Kamala.

O ex-presidente e a mulher, Michelle, sob o argumento de não querer influenciar o partido, ainda não declararam apoio.

Há quem desconfie que o casal tenta influenciar na escolha do vice da chapa antes de abençoar a campanha.

“Tenho confiança de que o partido será capaz de criar um processo do qual sairá um candidato excepcional”, equilibrou-se Obama.

• Hillary e Bill Clinton, ao contrário, mergulharam de ponta. “Kamala pode vencer e fazer história. Como muitas mulheres, é cronicamente subestimada, mas está bem preparada. O tempo de lamentação acabou. Agora é hora de organizar, mobilizar e vencer”, escreveu Hillary em um artigo publicado pelo jornal The New York Times.

A grana logo começou a pingar. Melhor, a chover. Nas primeiras 24 horas, a contar da desistência de Biden, empresários e simpatizantes encaixaram US$ 81 milhões (R$ 451 milhões) na campanha, maior volume de arrecadação em um dia da história americana. Em 48 horas, foi pulverizada também a marca dos US$ 100 milhões (R$ 565,5 bilhões). Além disso, Kamala recebeu adesão de grupos trabalhistas, governadores, senadores e de mais de 3 mil delegados democratas — são necessários quase 2 mil para garantir a indicação do partido. Ainda não foi oficializada, mas, por tudo isso, é pule de dez que o carimbo será dado até mesmo antes de 22 de agosto, dia de encerramento da convenção democrata.

“Kamala pode vencer e fazer história. O tempo de lamentação acabou. Agora é hora de organizar, mobilizar e vencer.”
Hillary Clinton, candidata democrata em 2016, em artigo no The New York Times

(Tasos Katopodis)

Como era da chapa de Biden, a nova campanha poderá usar também os recursos acumulados, o que, pela lei, seria vetado a outro candidato. Isso ajudou decisivamente a transformar resistências e movimentações de possíveis candidatos em apoios.

Um endosso, na segunda-feira (22), pesou acima da média: o de Nancy Pelosi, ex-presidente da Câmara, considerada uma fera na captação de recursos até por rivais.

Na dança das pesquisas da semana, a da agência Reuters a colocou com 44% das preferências contra 42% de Trump, liderança dentro da margem de erro de 3% para mais ou menos. Com o mesmo percentual de variação, a da CNN deu 49% a 46% a favor do extremista de direita.

O QG republicano sentiu o baque. Na quarta-feira (24), Trump apresentou queixa contra Kamala na comissão eleitoral, sob a alegação de que os democratas teriam violado leis de financiamento ao substituir Biden pela vice-presidente. No mesmo dia, referindo-se à democrata como “Kamala mentirosa”, diante da falta de sucesso do “Kamala risonha” anterior e com a inconsequência habitual, disparou novas fake news contra a adversária. “Ela é uma lunática radical de esquerda, uma louca que destruirá o país. É a favor da execução de bebês. Quer o aborto até o oitavo mês de gravidez.”

Apesar da versão oficial de que Biden divulgou a desistência sem qualquer comunicado aos democratas, o dia e a hora do anúncio e as reações imediatas de Kamala deixam supor que tudo pode ter sido decidido antes, e programado para gerar resultado no momento oportuno. Após publicar a carta, Biden postou um texto de apoio à vice com uma foto dos dois caminhando juntos, às gargalhadas.

(Divulgação)

Agenda roubada

Rápida no gatilho, Kamala respondeu carinhosamente minutos depois, sem esquecer de aproveitar a oportunidade para pedir um numerário aos simpatizantes e fortalecer a caminhada. “Em nome do povo americano, agradeço a Joe Biden por sua liderança extraordinária e décadas de serviço ao país. Estou honrada por ter seu apoio. Minha intenção é merecer e ganhar a nomeação. Farei tudo para unir o partido — e nossa nação — e derrotar Donald Trump e sua agenda de extremismos. Se você está comigo, faça doação agora mesmo”, mandou o recado.

Os que apostam na tese da mudança programada destacam o fato de Biden ter divulgado a decisão ao final da convenção republicana. Com isso, os democratas arrancaram das mãos dos opositores o comando da agenda de campanha na mídia. Ao final da semana, praticamente ninguém repercutia, por exemplo, o atentado contra Trump.

A dúvida, agora, é saber quem será o vice da vice.
A composição da chapa dependerá da estratégia.
Governadores manifestaram apoio a ela no instante seguinte à desistência de Biden, o que mostra disposição de influir na decisão.
Nomes do Meio-Oeste americano, reduto tradicionalmente republicano, como Gretchen Whitmer, de Michigan, e JB Pritzker, de Illinois, são bem cotados.
Junte-se a eles Andy Beshear, do Kentucky, Roy Cooper, da Carolina do Norte, e Josh Shapiro, da Pensilvânia (leia quadro abaixo com nomes possíveis).

A polarização entre o machismo de Trump e o perfil combativo de Kamala não é convidativa à oferta de duas mulheres. Por isso, dificilmente Gretchen Whitmer será indicada. As chances de Pete Buttigieg, que cogitou postular a presidência em 2020, quando seria o primeiro candidato abertamente gay a concorrer ao cargo, também diminuem neste cenário.

(Stefani Reynolds/AFP; Nic Antaya/AFP;Daniel Boczarski/AFP; Saul Loeb/Afp; Kent Nishimura/Afp; Yusuke Tomiyama/AFP)

O favorito

Josh Shapiro, governador da Pensilvânia, se destaca.
Derrotou com folga um rival extremista em 2022 e foi apontado por Kamala como “grande parceiro do presidente e meu”.
Butler, em seu estado, foi palco da tentativa de assassinato de Trump.
A reação ao ataque, que vitimou o apoiador republicano Corey Comperatore, enquanto protegia esposa e filha, rendeu mais créditos.

“Corey era um pai jovem. Corey era bombeiro. Corey ia à igreja todos os domingos. Corey amava sua comunidade. E, principalmente, Corey amava sua família”, afirmou, com a nobreza de desconsiderar o fato de o bombeiro ter morrido enquanto prestigiava um comício do rival.

“Tenho impressão de que ela escolherá o vice de um swing state (estado que oscila entre os lados)”, acredita Roberto Uebel, professor de relações internacionais da ESPM. “Shapiro, mais conhecido, e Beshear, para ajudar a convencer eleitores do Sul, são nomes fortes.”

Kamala garante saber como lidar com o adversário. No primeiro discurso após a desistência de Biden, ao melhor estilo “promotora versus criminoso”, afirmou “ter enfrentado perpetradores de todos os tipos: abusadores de mulheres, fraudadores de consumidores e trapaceiros que quebraram as regras para seu próprio jogo”. E mandou a pancada: “Portanto, ouçam-me quando digo que conheço tipos como o de Donald Trump”.

A troca poderá estender a base eleitoral democrata, capturando votos não alinhados a Biden.

“Kamala tinha 50% dos votos femininos e Biden, 44%. Entre negros e imigrantes, a margem também era maior. Mas é difícil afirmar que todo esse eleitorado seguirá com ela, que não tem a melhor imagem no movimento negro”, explica Douglas Barros, doutor em Ética e Filosofia.

O ponto é decisivo pois o voto dos negros foi crucial para Biden em 2020. Teve 87% desse eleitorado contra 12% de Trump. “Ela é incluída por eles na ala conservadora do partido. O apoio poderá não ser tão expressivo assim”.

Família

• Filha da pesquisadora de câncer indiana Shyamala Gopalan e do jamaicano Donald Don Harris, professor titular aposentado de Economia da Universidade de Stanford, casada com o advogado judeu novaiorquino Douglas Emhoff, Kamala visitou, ainda criança, a Índia materna.

Lá conheceu o avô, por quem foi influenciada. Alto funcionário do governo, ele lutou pela independência do país asiático. A avó viajava para ensinar às mulheres fundamentos de controle da natalidade.

Tornou-se promotora distrital em 2003. Apoiou uma lei controversa que tornava a evasão escolar contravenção e punia pais que não mandassem os filhos à escola. A taxa caiu, mas críticos consideraram a regra excessivamente punitiva.

Em 2016, derrotou Loretta Sanchez, congressista com duas décadas de experiência, e chegou ao Senado.

Os interesses brasileiros

Na vice-presidência, ao contrário do que costuma ocorrer com democratas, fala uma língua próxima do interesse brasileiro em pautas globais e ambientais.

“Biden recolocou o País nas discussões ambientais e também no Conselho dos Direitos Humanos da ONU e na Organização Mundial da Saúde, dentro da Unesco. Isso era vetado por Trump”, enumera o doutor em Ciência Política e professor da Casa do Saber Paulo Velasco. “O abandono do anti-globalismo de Trump está próximo do interesse brasileiro.”

Derrotar tipos semelhantes a Trump não é filme novo para Kamala Harris.
Em 2009, concorreu como azarona à procuradoria-geral da Califórnia. Na outra ponta estava Steve Cooley, republicano branco que surfava em popularidade por ter requisitado ao governo suíço a extradição do diretor polonês Roman Polanski, foragido dos EUA desde 1978, após ser acusado de estuprar uma menina de 13 anos. Promotor público em Los Angeles, Cooley fez campanha defendendo proibição de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, suspensão de leis ambientais e fortalecimento da repressão à imigração ilegal. Discursou como vencedor na noite da eleição, mas a contagem de votos confirmou Kamala como primeira mulher na história a ocupar o mais alto posto jurídico californiano. Tomara que ela não tenha desaprendido a vencer tipos como Cooley e, sobretudo, Donald Trump.

* Colaborou Debora Ghivelder