Mercosul vive por aparelhos, dizem analistas. E eles não estão otimistas
Por Eduardo Marini
RESUMO
• Enfraquecido por disputas político-ideológicas, erros de estratégia, protecionismo e fogo amigo de integrantes, bloco comercial sul-americano passa pelo pior momento
• A saída, dizem especialistas, é voltar a apostar em acordos com países e blocos industrializados — e a acreditar no projeto
• A conceituada publicação especializada The Economist já não enxerga o bloco com tanta importância
A revista britânica The Economist, uma das mais respeitadas do mundo, do alto de seus 181 anos de existência, acaba de publicar longa reportagem sobre o Mercado Comum do Sul, o Mercosul. Criado em 1991 como área de livre comércio e união de tarifas aduaneiras, o bloco reúne Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Venezuela (suspensa desde 2016) e os associados Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Peru e Suriname. Os autores não usaram de diplomacia. Sob a chamada “União infeliz”, cravaram o título “A irrelevância do Mercosul” e seguiram duros: “Outrora emissários de um futuro liberal, os membros estão cada vez mais em desacordo”. Mais adiante, deram a estocada final: “A realidade é que o Mercosul não é mais tão importante”.
Lembraram obstáculos crônicos:
• dificuldade para fechar acordo com a União Europeia,
• tarifas desiguais,
• decisões descumpridas,
• assimetria (Brasil detém em média 70% do PIB total).
E também atentados recentes contra a harmonia entre os parceiros, como a decisão do presidente da Argentina, o ultradireitista Javier Milei, de trocar a cúpula semestral do bloco, em Assunção, no Paraguai, por um final de semana ao lado do ex-presidente Jair Bolsonaro na Conferência da Ação Política Conservadora em Balneário Camboriú (SC). Detalhe: Milei ignorou Lula, a quem costuma chamar de “corrupto” e “comunista”, em todo o período por aqui.
O presidente reagiu chamando a Brasília o embaixador em Buenos Aires, Julio Bitelli, para consulta. “Discutimos como levar a relação da melhor forma”, tentou contemporizar o embaixador. Mas, no universo da diplomacia, sabe-se que a atitude de Lula é a admissão de que alguma (ou muita) coisa parou de funcionar na interlocução entre os países.
“Conflitos, mudanças de governos e crises levaram ao desinteresse completo pelo processo.”
Janina Onuki, professora de Ciência Política e integrante do IRI da USP
Quando desacertos e frustrações dessa ordem começar a preocupar o mundo, a questão se impõe: o Mercosul, na prática, acabou? “Vive seu pior momento”, resume a ISTOÉ o professor e doutor em Ciências Socias Paulo Niccoli. “Nos anos iniciais, com governos de esquerda, as divergências eram econômicas. Tributação, divisão de etapas de produção de carros e linha branca, coisas do tipo. No governo Bolsonaro, o Mercosul foi escanteado. Milei abalou o bloco de vez com o discurso político-ideológico de taxá-lo como instrumento da esquerda e de censura às ações neoliberais na região.”
Problemas
Janina Onuki, professora do Departamento de Ciência Política e integrante do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, detalha a trajetória do bloco até o enfraquecimento. “Ele deveria ampliar relações, inserir os países de forma qualificada nas negociações multilaterais, fortalecer a liderança do Brasil e ampliar a visibilidade da América do Sul”, resume. “Mas a combinação entre conflitos comerciais, falta de resultados, mudanças de governos e metas, visões distintas sobre integração regional e crises internacionais, como a de 2008, levou ao desinteresse completo pelo processo.”
Ela destaca o que precisaria ter sido feito. “Se tivessem ampliado a institucionalização, supranacionalizado o processo, a continuidade teria sido melhor assegurada.” Mas as decisões se mantiveram no plano intergovernamental e os conflitos acabaram resolvidos, amenizados, abandonados ou ignorados pelos países, não no âmbito do acordo. “Mudanças de poder tornaram- se problemas. Como a estrutura depende de governos, fica atrelada ao conflito de visões de mundo dos presidentes. A polarização política também afetou diretamente.”
Pedro Feliú, professor do IRI da USP, destaca que a etapa comercial do acordo deveria ser o início de um processo com dispositivos políticos e sócioculturais para desembocar na união. No começo, destaca, o bloco serviu para garantir mercado aos produtos industriais, sobretudo brasileiros e argentinos. “As exportações brasileiras de manufaturados para a China é irrelevante. Os EUA são parceiros importantes e Mercosul fica entre o segundo e o terceiro lugar. As posições da Fiesp e da CNI eram conservadoras, protecionistas, mas, a partir de 2013, começaram a aceitar acordos do bloco com nações industrializadas. Alguns andaram; a maioria não.”
A melhor forma de retomar o fôlego, avalia Feliú, é voltar a apostar nos acordos com Japão, Coréia do Sul, Canadá e o bloco de Suíça, Noruega e Islândia. “Uns terão prejuízo e outros irão se adaptar, mas a saída passa por aí.”
O auge dos negócios entre os integrantes ocorreu em 2011, com US$ 72 bilhões.
• O volume financeiro das transações entre eles saltou de US$ 9 bilhões, em 1990, para mais de US$ 31 bilhões em 1996.
• Mas a gangorra macroeconômica, com desvalorização do real em 1999 e mergulho da Argentina no abismo entre 2001 e 2002, colocou pedras no caminho.
• As crises trouxeram medo, refletido numa avalanche protecionista. Mais de 400 ações fora do espectro tarifário foram disparadas entre os países-membros a partir da crise financeira de 2008.
A pandemia e a perda relativa de força do mercado automobilístico nos dois países afetaram o movimento na região. Acordos de livre comércio foram fechados apenas com Israel, Cingapura e Egito.
No caso da União Europeia, o escudo protecionista dificulta a batida de martelo.
O Mercosul, conclui a The Economist, “deveria ser ferramenta para desenvolvimento econômico e ganho de peso de seus membros, mas o declínio conspira contra os dois objetivos”. Na mosca. Para interromper a respiração por aparelhos, é preciso voltar a acreditar que o Mercosul, fortalecido e com regras soberanas, continuará a ser o melhor caminho.