Brasil

Herança maldita: contrato sob suspeita pode virar incômodo para o governo

A VTC Log, empresa investigada por corrupção na CPI da Pandemia sob Bolsonaro ganha contrato de R$ 552 milhões no Ministério de Saúde em concorrência marcada por suspeitas de direcionamento. Ação na Justiça Federal questiona critérios que afastaram outras empresas da disputa

Crédito: Ettore Chiereguini

Gigante no setor de logística, a VTC ganhou suspeitos aditivos de contrato durante a pandemia para transportar e armazenar insumos estratégicos e vacinas (Crédito: Ettore Chiereguini)

Por Vasconcelo Quadros

Vencida no início de junho deste ano por uma empresa de logística acusada de corrupção durante a CPI da Pandemia, em 2021, durante o governo Bolsonaro, a execução de um contrato de R$ 552 milhões no Ministério da Saúde pode virar mais uma dor de cabeça para o governo.

As dúvidas sobre a lisura do certame começaram a ser levantadas antes do pregão, realizado no dia 3 do mês passado, e aumentaram depois que o pregoeiro e o responsável pelo setor de logística do Ministério da Saúde validaram o resultado, autorizando a empresa VTC Operadora Logística Ltda., gigante do setor com matriz em Brasília, a dar continuidade às operações de transporte e armazenamento de insumos estratégicos para a saúde.

Num mandado de segurança impetrado na Justiça Federal do Rio Grande do Norte, uma das empresas que se sentiram impedidas de participar da concorrência, a Linus Log Ltda., pede a anulação do pregão e uma nova licitação, argumentando que os critérios exigidos no edital feriram o princípio de economicidade e de competitividade, impedindo a participação de outras empresas e direcionando os termos do edital para favorecer a VTC, que atua como prestadora exclusiva dos serviços desde que o governo federal extinguiu a antiga Cenadi (Central Nacional de Armazenamento e Distribuição de Imunobiológicos), em 2015.

Outras duas empresas, a BSB-DF Transporte de Cargas Ltda., de Águas Claras, cidade satélite de Brasília, e a Triunfo Legis Serviços Especializados de Apoio Administrativo Ltda., de Guarulhos, também questionaram os critérios. Linus e Triunfo não participaram da concorrência, mas tentaram impugná- la na esperança de entrar na disputa.

Apontado como suspeito de receber propina no relatório da CPI, Roberto Ferreira Dias chegou a ser preso (Crédito:Edilson Rodrigues)

No pedido à Justiça, a Linus argumenta que o edital foi elaborado com exigências de índices patrimoniais, capacidade e atestados em níveis não previstos em lei, trocando, por exemplo, letras em que o critério aceitável é de “até” ou “igual”, por “superior” ou “de”, como no caso de capital exigido para a execução do contrato.

Os advogados explicam, por exemplo, que o patrimônio líquido mínimo da empresa candidata deve ser equivalente a até l0% do valor total do contrato estimado, mas o edital limitou a um capital de no mínimo “de 10%”, o que jogou a exigência para cima e restringiu outras empresas nesse quesito.

Antes de impetrar a ação na Justiça, a defesa das empresas tentou evitar o pregão com 11 pedidos de esclarecimentos e, depois, com dois de impugnação, todos eles negados pelo Departamento de Logística do Ministério da Saúde.

No mandado de segurança, a empresa afirma que o edital foi construído “com cláusulas limitadoras e restritivas para favorecer a atual prestadora do serviço”. Segundo a Linus, as concorrentes “foram fulminadas pelas exigências de índices e comprovações técnicas que superam o estipulado na Legislação vigente”.

O juiz federal Magnus Augusto Delgado, da 1ª Vara da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte, negou a liminar em que a empresa pleiteava a anulação da licitação, mas manteve o caso em aberto e pediu que o pregoeiro Ednaldo Manoel de Sousa e o diretor de Logística do Ministério da Saúde, Odilon Borges de Sousa, prestem as informações sobre os critérios adotados no pregão e respondam sobre os pontos questionados no mandado de segurança.

Desde 2016, a VTC tem o monopólio da logística de insumos do Ministério da Saúde (Crédito:Julia Prado)

Anulação do contrato

Depois, ele deve decidir se anula ou não o contrato, que já está em execução e, financeiramente, é o maior gasto do Ministério da Saúde com armazenamento e transporte de insumos da história. A VTG Log assumiu esses serviços em 2016, logo depois que o Tribunal de Contas da União (TCU), respondendo a pedido de fiscalização do senador Otto Alencar (PSD-BA), considerou ilegal a transferência da armazenagem para os Correios.

Os problemas da VTC e as fortes suspeitas de corrupção só viriam à tona, no entanto, em 2021, quando o Senado criou a CPI da Pandemia para investigar a sabotagem do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro ao combate à Covid-19 e, paralelamente, levantou suspeitas sobre um esquema de propinas no Departamento de Logística do Ministério.

Procurada, a VTC disse que está há 35 anos no mercado, participou “licitamente do novo processo licitatório” e “atendeu todos os requisitos exigidos, motivo pelo qual se sagrou vencedora do certame”. Segundo nota da VTC, apesar das investigações o TCU se manifestou pela idoneidade da empresa. O Ministério da Saúde explicou que “no decorrer do pregão adotou todos os procedimentos previstos administrativamente e legalmente, em fiel cumprimento a todos os princípios que regem a Administração Pública”.

O relatório da CPI tem 1.180 páginas, nas quais estão condensados seis meses de investigação que terminaram com o indiciamento de Bolsonaro por sete crimes relacionados ao boicote generalizado às medidas sanitárias e de outras 65 pessoas, entre as quais quatro diretores da VTC Operadora Logística — os sócios Carlos Alberto de Sá, Teresa Cristina Reis de Sá e Raimundo Nonato Brasil, além da diretora-executiva, Andreia da Silva Lima, todos eles acusados de corrupção ativa e improbidade administrativa.

Em toda a investigação da CPI, só duas empresas foram indiciadas por atos lesivos à administração pública e uma delas foi exatamente a VTC. O senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator, dedicou um capítulo especial de 35 páginas que resultou, à época, na impugnação pelo TCU de um aditivo do contrato original da VTC, superfaturado de R$ 18,9 milhões.

Andreia da Silva Lima e Raimundo Nonato Brasil, sócios da VTC, foram indiciados na CPI da Pandemia por corrupção (Crédito:Roque de Sá)

Corrupção

Entregue formalmente ao Ministério Público Federal, o relatório foi desmembrado em 12 procedimentos de investigação que correm desde 2022 na Procuradoria da República do Distrito Federal, um dos quais, relacionado às suspeitas envolvendo a VTC e o Departamento de Logística do Ministério da Saúde.

A senadora Eliziane Gama (Solidariedade-MA) chegou a afirmar em trecho do relatório que o contrato era aparentemente perfeito, mas, no detalhamento, percebeu que havia um jogo de planilhas que originou o aditivo irregular. Ela e o senador Alessandro Vieira (Cidadania-ES) entraram com representação no TCU e MPF pedindo apuração sobre indícios de fraude, corrupção e irregularidades no contrato da VTC.

Renan apontou o então diretor de logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, como beneficiário de suposta propina da VTC, que pagou inclusive vários boletos de despesas do servidor. Um deles, de 24 de junho de 2021, de R$ 13.500,00, mesma data em que o Ministério da Saúde pagou à VTC R$ 62 milhões. A

cusado de mentir em depoimento, Dias chegou a ser preso em flagrante por ordem do então presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM). Renan também registra que durante a pandemia, período em que foram celebrados os aditivos, num comportamento estranho ao relacionamento com fornecedores, Dias travou centenas de conversas com a diretora-executiva da empresa, Andreia da Silva Lima, a maioria dos contatos em finais de semana, longe do expediente.

Renan Calheiros e Eliziane Gama dedicaram 35 páginas da CPI da Pandemia às suspeitas de corrupção da VTC na Saúde (Crédito:Edilson Rodrigues)
(Evaristo Sa)

A VTC presta serviço de transporte e armazenagem ao Ministério da Saúde desde 2016, com contratos que, até 2018, saltaram de valores anuais de R$ 111,9 milhões a R$ 175 milhões durante a gestão do ex-ministro Ricardo Barros (PP-PR), que também foi indiciado pela CPI.

A partir de 2018, no governo Bolsonaro, a empresa entrou em acordo com o Ministério e passou a receber anualmente, até julho de 2023, R$ 97 milhões por ano, totalizando um contrato de R$ 485 milhões que, como se vê, é R$ 67 milhões a menos que o contrato que resultou do certame vencido em junho deste ano. “É um contrato que, pelo histórico da empresa, certamente merece uma atenção maior dos órgãos de controle”, disse à ISTOÉ o senador Alessandro Vieira.