Comportamento

“Enquanto eu estiver aqui, Elis não será esquecida”, diz João Marcello Bôscoli

Crédito: André Lessa

João Marcello Bôscoli: "Cercada e explorada por homens a vida toda, [Elis] desenvolveu uma personalidade forte como defesa e acho isso extremamente positivo" (Crédito: André Lessa)

Por Luiz Cesar Pimentel

João Marcello Bôscoli nasceu respirando música, já que é filho do produtor e compositor Ronaldo Bôscoli e da cantora Elis Regina. A herança genética é tão forte que seus dois irmãos, Maria Rita e Pedro Mariano, também foram para o universo artístico — eles para o palco e João para os bastidores, como produtor. Quatro décadas após o falecimento da mãe e três de se despedir do pai, ele segue vivendo música 24 horas por dia — está relançando a gravadora Trama, em empréstimo de nome de empresa aberta pela mãe, e para marcar os 80 anos que ela faria e a nova fase da empresa, lança uma música nova de Elis. De áudio recuperado em gravação de 1976, produziu “Para Lennon e McCartney”, que soa como se tivesse sido registrada pela gaúcha nesta semana. Uma das coisas que João Marcello mais gosta, além de estar no estúdio, é de conversar sobre música. Em entrevista à ISTOÉ, ele diz o que prepara para a celebração da, em breve, octogenária mãe, de como enxerga a produção atual e para onde imagina que caminhará o som no planeta.

Quem é o João Marcello, além de filho da Elis e do Ronaldo Bôscoli?
Eu gosto muito do fato de ser filho da minha mãe. Quando não falam sobre ela, acho estranho. Talvez seja parte do relacionamento que desenvolvi com uma pessoa que é super presente para mim, mas fisicamente ausente. Não tem um dia em que eu saia de casa e que alguém não comente, por isso é uma coisa que me enche de alegria. Sou um produtor musical que começou a tocar durante os ensaios dela. A primeira gravação profissional que fiz foi no álbum do João Bosco, no ano em que minha mãe morreu — um gesto de afeto dele. Em 1986, fui chamado para tocar em um show do Jorge Benjor, uma experiência incrível, e a partir daí decidi ser um produtor musical. Ele foi o primeiro artista que eu tive a chance de coproduzir uma faixa.

Você pulou da bateria para a mesa de som?
Um dia fui chamado pra trabalhar na (agência de publicidade) DPZ e resolvi usá-la como uma faculdade, que eu não tinha feito. Eu tinha que viajar e trazer as referências musicais para a criação. Em 1995, assinei contrato de produtor com a Sony, comecei a escrever na (revista) Capricho e tinha um programa de televisão na Gazeta, com parte do áudio transmitido pela (rádio) Musical FM. Acabei encontrando um grande amigo de escola, que trabalhava com administração de empresas (Andre Szajman) e nos tornamos sócios — começamos a juntar as peças para montar a (gravadora) Trama. Aconteceu de forma espontânea, que é de certa forma um modo que segue até hoje.

(Divulgação)

“Meu pai (Ronaldo Bôscoli) viu a Bossa Nova nascer, era cunhado do Vinicius de Moraes, a Chiquinha Gonzaga era da família”

Existem os herdeiros de bens físicos. Você é herdeiro de um legado artístico imaterial. Como foi para você e seus irmãos lidarem com essa responsabilidade durante a vida?
Eu não sinto assim. Primeiro porque perdi minha mãe com 11 anos e, pelo pouco que a gente conviveu, sei que ela era contra criar atalhos para mim. Quando eu era criança, ela não me deu uma bateria cara, mas uma bem normal para eu aprender sozinho a tirar som do instrumento. Embora as mães muitas vezes acabem protegendo suas crias, o objetivo principal dela era transformar o meu caminho em algo natural e não artificial. Música é algo que eu sempre gostei e deu sentido à minha vida.

Estúdio sempre foi sua zona de conforto?
O estúdio é um lugar mágico, eu gostava tanto que pensava: ‘Como é que eu faço pra trabalhar em algo que eu não precise sair nunca do estúdio?’. O meu pai, que comecei a conviver mais depois que minha mãe morreu, porque brigaram quando se separaram e fiquei alguns anos sem vê-lo, de certa forma mostrou o caminho, a tal visão geral do processo. Ele não era músico, mas trabalhava com música. Ele viu a Bossa Nova acontecer, era cunhado do Vinicius de Moraes, a Chiquinha Gonzaga era da família. Eu achava bem legal aquele negócio, mas ele tinha uma conexão com o show ao vivo que é algo que sempre me tensionou muito. É o espaço onde nada pode dar errado, já que tem uma plateia pagando e aplaudindo. Eu sempre fui mais apegado à vida do estúdio, que é meu lugar favorito na Terra.

O estúdio também te permite algumas coisas, como trabalhar postumamente com a sua mãe, como você fez nesta volta da sua gravadora.
Essa volta aconteceu porque a gente sentiu a necessidade de digitalização de acervo, para não perder as músicas. A fagulha inicial foi essa. A gente está digitalizando, restaurando, remasterizando. Eu nunca fui apegado ao passado, sempre gostei de olhar para frente, mas há um momento em que somos obrigados a olhar para trás para cuidar das coisas. Pode ser controverso, mas trabalhando com Elis sinto que ela é do futuro.

O que os motivou a reativarem uma gravadora em ambiente amplamente digital?
Temos três pilares: o acervo, onde possuímos cerca de 23 mil mídias físicas. Outro pilar é o nosso catálogo, pois há álbuns que nunca foram remasterizados. E o terceiro, novos lançamentos, principalmente em formato de singles, olhando para frente — Elis jogava troféus e discos literalmente no canil e sempre estava pensando no próximo álbum. No mundo digital, temos, só na nossa distribuidora, 20 mil lançamentos por dia. No Brasil, tem 80 mil, 100 mil lançamentos por dia. Não dá para acompanhar. Por isso é que ter um estúdio, um cuidado com o processo na hora do lançamento, é algo significativo para nós. Algo que percebi é que a maior parte das pessoas não tem noção de que o disco é o início e não o fim de um processo.

Nesse tsunami de lançamentos, nada me convence de que a música atual é melhor do que a antiga. Hoje a canção é feita para ser consumida como acessório enquanto você faz outras atividades. Você tem essa impressão?
Durante a adolescência, temos uma predisposição neural a conseguir absorver novas coisas, que vai caindo ao longo da vida, a não ser que exercitemos muito isso. Então gostar mais da música do seu tempo é natural. Há uma saudade de nós mesmos. Acredito que permaneça ainda hoje o tal choque de gerações e deve seguir no futuro. Aproveito para lembrar que “consumir” vem de “consumere”, que significa destruir, gastar, esgotar. Não gosto de consumir música, não. Minha impressão geral também é essa; música usada como acessório, como material de queima.

E o consumo rápido e imediato?
A média no Brasil é de 40 e poucos segundos de audição de uma canção. Tenho amigos que dizem que os filhos nunca ouviram uma música inteira. Pode ser o primeiro passo para você retornar a uma atenção e quebrar esses microciclos de 15 segundos. A música ocidental é muito baseada em tensão e relaxamento, e a vida é um pouco dessa forma. Mas acho que trouxemos para a música o que a indústria do alimento acabou realizando nos anos 70, que é o alimento processado, pré-fabricado. Há uma ilusão criativa semelhante: gente comprando pelo app, esquentando no micro e achando ser cozinheiro.

Madonna, Michael Jackson eram os artistas que permeavam todo os ambientes — mesmo que você não gostasse, sabia quem eram. Hoje a Taylor Swift é uma superstar que muda a economia dos Estados Unidos e tem pessoas que não fazem ideia de quem seja. Por que isso?
Creio que houve uma hiper fragmentação da cultura e da mídia como um todo. Perdemos a noção porque foi acontecendo de uma maneira gradativa, embora tenha sido rápido. Todo mundo tem um império de mídia de bolso. Antigamente, para abrir o álbum de família, tinha que ser muito amigo dessa pessoa. Esse álbum, atualmente, é público. Isso nos dá uma medida de como as coisas mudaram com essa possibilidade da publicação sem intermediação aparente. Ainda assim, não me parece que o talento surge dessa forma. O talento é filho da dificuldade, e o solo atual tem sido muito fraco para a criação de algo genial. Somos um bando de filhos de pais ricos que estão assaltando despensa cheia e não repondo quase nada. Vivemos do que fizeram lá atrás. Com raríssimas exceções, é tudo reprodução. Mas tenho fé no que está por vir. Contudo, quando a natureza cria os Beatles, ela precisa descansar e a indústria do consumo e inovação acaba criando uma ilusão de que isso vai acontecer sempre. E não é possível que aconteça sempre. Mas acontecerá em algum momento.

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“A única vez em que a Elis (Regina) desafinou, foi um backing vocal que a atrapalhou”

De onde você acredita que vem a identificação musical?
Creio vir da nossa natureza, da emoção causada. A música é uma ilusão perceptiva criada dentro do cérebro. O que você ouve na sua cabeça é uma interpretação cerebral. O que sai da caixa de som não é o que você está ouvindo. É um tipo de energia transformada em outra, o que é lindo. Meus filhos me fazem ouvir coisas que não gostava e passo a gostar no primeiro segundo em que percebo que eles gostam. O amor faz com que a gente se envolva nas músicas, é a única força realmente transformadora nesse planeta. O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença.

Sua mãe faria 80 anos em 2025. Você planeja homenagem?
Sim, na verdade, o que eu gostaria é apresentar um compilado de tudo que já foi feito. São quatro livros, um longa-metragem, duas minisséries, musicais, vários documentários. Terá uma exposição também. Este ano ela foi capa de 10 cadernos culturais e não vejo paralelo em nenhum lugar no mundo. Três amigos de três estados diferentes me ligaram nesta semana dizendo que a nova versão de música da Elis estava tocando no rádio. Enquanto eu estiver aqui, ela não será esquecida.

Dá para cravar que não há cantora melhor que ela na história da música brasileira?
Tem gente que não considera e acho isso muito legal. Se eu tivesse que escolher uma cantora para entrar no estúdio e trabalhar para sempre, ficaria com a Elis. Mas ela não gostaria de ser colocada nesse lugar de melhor, até porque não existe isso na música. Dentro da possibilidade de todas as emoções, sentimentos e ideias, não é possível uma voz entregar tudo. Algumas coisas têm que vir de uma voz específica, que pode nem ser super afinada. Fico feliz por ela não ser esquecida, mas a solidão do topo não faria bem para ela e poderia gerar alguma antipatia. Como alguém que ama a mãe, não gostaria que isso acontecesse. Acho que a Elis é uma das maiores cantoras do mundo do século 20. A única vez em que acharam uma desafinada, viram que foi alguém no backing vocal que a atrapalhou.

Como ela era em casa?
Ela tinha um coração muito quente e uma cabeça muito elevada – algo incomum. Cercada e explorada por homens a vida toda, desenvolveu uma personalidade forte como defesa e acho isso extremamente positivo. Ela tinha 1,53m. Que risco ela ofereceria a alguém? Era apenas uma pessoa que corria desesperadamente atrás dos seus sonhos, fazia parte dessa primeira geração de mulheres a sair de casa em uma época em que a profissão de cantora e de profissional da noite eram vistas como a mesma coisa, o que é um desrespeito com ambas. Acho que minha mãe foi um bom acidente genético, porque observando minha avó e meu avô, não dava para entender como ela saiu dos dois. Uma pessoa rara.