Editorial

O mundo está estranho

Crédito: Daniel Cole

Carlos José Marques: "A coalizão de esquerda que saiu vitoriosa lançou Macron no mesmo corner do ringue que os legatários de Marine Le Pen (foto) pretendiam colocá-lo" (Crédito: Daniel Cole)

Por Carlos José Marques

Intolerância é o nome do jogo. Uma onda de extremismo com ideias retrógradas levadas a cabo no bojo da ascensão da ultradireita toma conta de praticamente todos os continentes, do Ocidente ao Oriente. Nos EUA, Donald Trump pontifica. Na Alemanha, Itália, Inglaterra, na América Latina em boa parte o fenômeno se repete. A França escapou por pouco dessa avalanche de um radicalismo sem precedentes, que ameaçava as eleições legislativas sob a batuta de Marine Le Pen. Ainda assim, não se pode deixar de dizer que seu partido, com bandeiras pregando o preconceito de gênero, raça, nível social e toda sorte de perseguições deixou de ganhar terreno — a tal ponto ele cresceu que quase assumiu por completo o poder. Rompeu o cordão sanitário que o impedia de avançar por quase duas décadas e não deve parar por aí. Há no momento o que se pode chamar de grande batalha planetária pela democracia. Aqui, no Brasil, experimentamos o fenômeno com o fatídico 8 de janeiro, que almejava via golpe de Estado o aniquilamento da Constituição —mais uma vez movido por aloprados da direita insana, liderados por um certo capitão, o candidato a caudilho Jair Bolsonaro. Quase sucumbimos. O perigo espreita a todo momento em qualquer lugar. Dias atrás, o mesmo Bolsonaro, que enfrenta inúmeros processos por crimes incontáveis (e voltou a ser indiciado em mais um, por desvio de joias), concedeu uma medalha débil ao colega de cruzada e atual presidente da Argentina, Javier Milei. A comenda, que mais se assemelha a um deboche social, dando bem o tom da qualidade programática dessa turma, refere-se a méritos deletérios, dignos de gerar vergonha alheia, mas que para eles parecem soar como elogios, do naipe de “imorrível, imbrochável e incomível”. Como se chegou a esse nível decrépito de líderes? As nações e os povos em geral, decepcionados com o rumo das coisas, estão a passar por momentos estranhos. As urnas prenunciam o voto de protesto como saída. A polarização de propostas é levada ao limite da quase ruptura, sem racionalidade. Alimentada pela intransigência, violência, perseguições sociais, culturais, caça a imigrantes, protecionismo, o banditismo falando mais alto. A consciência sobre os princípios da coletividade, do bem comum, das relações pacíficas que marcaram a evolução civilizatória da humanidade ficou para trás, em segundo plano. As redes digitais despontam como terra de ninguém, instrumento maior da propagação de fake news que moldam, equivocadamente, o pensamento de muitos. No Reino Unido e na França, numa tentativa de resistência, eleitores votaram por uma maior proteção do Estado. Não estão nada satisfeitos neste quesito da fragilidade institucional. Duas icônicas praças democráticas vivem à beira da Guerra Civil, como classificou o próprio presidente francês, Emmanuel Macron. Sites da extrema-direita pregam, enquanto isso, o assassinato de opositores e praticam o ativismo bárbaro que em outros tempos, e situações parecidas, levaram ao nazismo e ao fascismo, correntes que voltam a florescer notoriamente em células clandestinas — no Brasil inclusive. O planeta está se convertendo em um trem fantasma bolorento. A cada esquina, um solavanco. O autocrata Viktor Órban assumiu a União Europeia com o slogan da “Europa Grande Novamente”, nos mesmos termos grandiloquentes adotados pelo americano Trump e, há décadas passadas, pelo carniceiro Adolf Hitler, impondo uma agenda conservadora de modos e costumes e priorizando restrições a estrangeiros, apoio a ditadores como Putin e outras barbaridades, enquanto fazia picadinho de pautas essenciais como segurança alimentar, pacto por competitividade racional e melhoria da política agrícola. A retórica prevalecente é a da não empatia e a do desprezo à resiliência. No caso específico da França, que assustou o mundo, as negociações políticas daqui por diante serão longas e difíceis. A coalizão de esquerda que saiu vitoriosa lançou Macron no mesmo corner do ringue que os legatários de Marine Le Pen pretendiam colocá-lo. Não há atalho simples ou rápido. A moderação é fator escasso nas conversas por ali. O amontoado de resistentes que brecou a consagração dos extremistas de direita é bem heterogêneo, mal se comunica, não sabe o que quer ou para onde ir em conjunto. A dificuldade para governar será enorme. Lá, como de resto por muitos países, estão em falta as pessoas que realmente almejam construir pontes e não em implodir caminhos. Tudo muito estranho e assustador.