Brasil

Lula quer que Forças Armadas prestem contas sobre mortos na ditadura

Crédito: Arquivo/Agência Estado/Ae

Anos de chumbo: comissão que investiga violência da ditadura foi extinta por Bolsonaro (Crédito: Arquivo/Agência Estado/Ae)

Por Vasconcelo Quadros

RESUMO

•  Sem resistência militar, Lula reinstala comissão que investigará o paradeiro de desaparecidos políticos na ditadura
• Grupo havia sido desativado por Bolsonaro no apagar das luzes de seu governo
• Procuradora da República comandará as buscas por 140 corpos que o comando do Exército considera questão humanitária

 

No período mais agudo dos anos de chumbo, Lula constatou que havia tortura e morte nos porões ao ver com os próprios olhos o irmão, José Ferreira da Silva, o Frei Chico, à época militante do PCB, “arrebentado” e jogado no canto de uma cela do II Exército, em São Paulo. A imagem do irmão machucado mudou seu entendimento sobre a ditadura e a política, mas ele nunca bateu de frente com os militares, pelo menos até agora. O Lula 3 decidiu dar uma sacudida na poeira dos quartéis para estimular as Forças Armadas a um gesto humanitário: responder a centenas de famílias onde estão os corpos de mais de 140 militantes que há mais de meio século figuram na lista de desaparecidos políticos.

Por decisão do presidente, o governo reinstalou, no início de julho, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) desativada no governo Bolsonaro e indicou como meta a análise dos processos de anistia, a reconstrução da memória sobre o período e a retomada de investigações que possam levar à localização dos restos mortais dos desaparecidos ou a informações mais precisas sobre o destino de cada um deles.

Em raros momentos o ambiente foi tão favorável a uma solução para um dilema que, como se viu, ajudou a alimentar o fanatismo de extrema-direita, que desembocou no 8 de janeiro de 2023. Quando parte dos militares golpistas está a caminho da cadeia, o comando atual das Forças Armadas não se opõe a uma investigação ampla. A imensa maioria dos agentes que se envolveram em crimes imprescritíveis, como tortura e ocultação de cadáveres, já morreu e agora há uma nova composição na CMPD, com a nomeação de uma procuradora da República, Eugênia Augusta Gonzaga, que acompanha essa questão há muitos anos pelo MPF.

Convidada por Lula e pelo ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, Eugênia vai presidir os trabalhos. Ela afirma que a desativação da comissão por Bolsonaro no penúltimo dia do mandato gerou inquietação e angústia entre os familiares pela interrupção de centenas de casos cuja solução estava em andamento.

Mas definiu como meta o dilema humanitário envolvido na controvérsia: a retificação de assentamentos de óbito e a busca e identificação de corpos de desaparecidos políticos, tarefa que exigirá análise profunda de informações dispersas em vários órgãos policiais e militares, mas também investigação científica em dezenas de ossadas guardadas em órgãos públicos.

Paulo Chagas (acima) não se opõe à investigação dos crimes da ditadura, mas é cético quanto a resultados. Eugênia Gonzaga (abaixo) assumirá a presidência da CEMDP e propõe um pacto entre o governo e Forças Armadas, enquanto o ministro Silvio Almeida (mais abaixo) afirma que Bolsonaro cometeu ilegalidade ao desativar a comissão, dizendo que uma resposta do Estado às famílias corrige a história (Crédito:Divulgação )

Citando o caso do militante da ALN, Eduardo Collen Leite, o Bacuri, a procuradora propôs na semana passada o que parece ser uma das poucas alternativas para se chegar a uma solução: um pacto entre representantes do governo e as Forças Armadas para romper a histórica negação por parte dos ex-agentes da ditadura sobre os horrores praticados nos porões, ou mesmo a céu aberto, como na Guerrilha do Araguaia, onde 41 dos 69 mortos foram executados friamente depois de feitos prisioneiros. “Não é possível que continue nessa resistência a informações cruciais”, diz a procuradora, que cobra uma mudança também no posicionamento do Judiciário. O STF tem anulado condenações contra torturadores, em razão da Lei de Anistia de 1979.

(Nelson Almeida)

Numa notável mudança institucional, o comandante do Exército, general Tomás Paiva, disse que a atuação da CEMDP na busca dos desaparecidos é um direito dos familiares e uma questão humanitária.

Já o general da reserva Paulo Chagas, um dos organizadores da versão militar sobre os anos de chumbo, também não se opõe à investigação, mas acha que buscar restos mortais é perda de tempo e diz que os vestígios encontrados até agora são registros vagos e falhos. “Os acusados já morreram. Não há o que fazer nas Forças. Acho que serve mais para a demagogia.”

• O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, afirma, no entanto, que a recriação da comissão é também passo importante na reconstrução da memória, verdade e justiça. “Famílias ainda aguardam respostas sobre o destino de seus entes. Não podemos virar a página da história de um passado de dor simplesmente varrendo a sujeita para debaixo do tapete.”

(Divulgação)

A busca por uma solução, segundo ele, não é revolver o passado para polemizar, mas prestar contas necessárias ao futuro do País, corrigindo distorções de um pedaço da história brasileira ainda em aberto. “Não se pode endossar a ilegalidade cometida pelo governo Bolsonaro, que no fim do seu mandato e antes de fugir para os Estados Unidos extinguiu de maneira arbitrária a comissão.”

Uma das primeiras tarefas da CEMDP é a realização de perícia, por exames de DNA, em dezenas de ossadas retiradas do Araguaia, de uma vala do Cemitério de Perus, em São Paulo, e do Cemitério Ricardo de Albuquerque, no Rio de Janeiro. Há na pauta 40 pedidos de retificação de certidões de óbito expedidas com informações incompletas na gestão anterior.