Editorial

Trump versus Trump

Crédito: Samuel Corum

Carlos José Marques: "Um extremista de traços populistas como Trump, num eventual revival de poder, deve mudar a face das relações intercontinentais como conhecidas hoje" (Crédito: Samuel Corum)

Por Carlos José Marques

Está sacramentada: a corrida eleitoral norte-americana virou a disputa de um candidato só, um auto-plebiscito do inefável bilionário Donald Trump, um referendo dele com ele mesmo. Depois do vexame lastimável do atual presidente dos EUA, Joe Biden, no debate com o arquirrival (antes mesmo da confirmação de seu nome para concorrer a um segundo mandato), a disputa eleitoral parece ter ficado realmente concentrada nessa única alternativa. Endiabrado, soberbo e mentiroso como sempre, o golpista de carteirinha e aspirante a soberano Trump parece convencido de que chegará lá novamente, de que irá superar todos os obstáculos e alcançar o intento da volta por cima, sem maiores esforços ou percalços, à despeito dos crimes a rodo e da gestão caótica que promoveu enquanto esteve com o manche do planeta em suas mãos. Decerto, o fanfarrão ianque possui razões para crer numa acachapante vitória. Biden deu as cartas que faltavam nesse sentido. No embate de propostas e argumentos, foi um adversário de dar dó, quase uma formiga indefesa frente ao brutamonte das palavras e encenações. Aliados choraram de desespero. Espectadores do confronto televisivo de dias atrás saíram com a firme convicção de terem assistido a um show de covardia explícita contra aquele idoso desamparado. A senilidade de Biden saltava aos olhos. Seu desempenho foi um desastre assustador no tête-à-tête com Trump. Gaguejava, tinha lapsos seguidos de memória, suava visivelmente, não concatenava ideias e lançava propostas indecifráveis e incompreensíveis — se é que dá para chamar aqueles garranchos mentais de propostas. Em suma, estava ali alguém que, para além da idade avançada, não parecia mais capaz de cuidar sequer de si mesmo, quanto mais da maior, mais rica e poderosa nação da Terra. Todos perceberam e tiveram a noção clara da fragilidade que Biden exibia, a ponto de a discussão, a partir dali, evoluir para um movimento de pedidos em série por sua renúncia ao pleito, cedendo a vaga a qualquer outra alternativa democrata que não a de si mesmo. Biden resiste, mas o próprio partido efetivamente já discute outro nome, como saída redentora. A questão é o risco que os EUA assumiram de estar nas mãos de duas opções francamente calamitosas — por motivos distintos, mas mesmo assim temerários. Como a potência que dirige o mundo livre vai ser guiada daqui por diante? Essa incógnita sacode o planeta. Diretrizes globais vão depender dos preceitos e orientações ditadas pelo próximo ocupante da Casa Branca. Foi sempre assim e, nas atuais circunstâncias, a situação incorpora ingredientes de riscos bem mais agudos. A falta de um comando razoavelmente equilibrado ameaça, em vários aspectos e de maneira incalculável, os destinos da humanidade. Não apenas guerras em andamento e conflitos de diversas ordens (comerciais, políticos e sociais) dependem da interferência e arbitragem dos EUA na busca por soluções. Questões de natureza financeira, fluxos migratórios e de harmonização comercial, seja na OMC como na própria ONU, contam com o voto decisivo do futuro líder americano. De sorte que um extremista de traços populistas como Trump, num eventual revival de poder, deve mudar a face das relações intercontinentais como conhecidas hoje. É um ponto de rotação complexo e temerário. Por isso mesmo, as eleições de novembro próximo se revestem de uma importância capital, sem precedentes na história. Que Biden não mais possui as mínimas condições mentais de seguir na cadeira de controle, todo mundo parece perceber e já sabe. Mas Trump é a soma de pesadelos que pode colocar tudo a perder. Não há terceira via possível até aqui, muito embora nomes alternativos e até desconhecidos comecem a despontar nas conversas. Caso do advogado Robert Kennedy Jr., de nome notório, sobrinho do ex-presidente John Kennedy e filho de Bob Kennedy, que foi assassinado como o irmão quando se candidatou ao posto. Seria viável? Para um sistema político binário como o dos EUA, centrado entre republicanos e democratas, parece pouco provável. Inusitada, a circunstância deve, mesmo assim, suscitar esperanças nesse aspecto. Líquido e certo é a ideia de um escrutínio marcado pelo dilema do “Trump versus Trump”. Ele concorrendo contra ele mesmo, porque tanto os que o idolatram quanto aqueles que o odeiam são, praticamente, da mesma monta. Quase metade dos americanos preferem votar em um poste ou em qualquer outra opção que não seja Trump. Numa corrida que está literalmente dividida ao meio, pouco importa agora a situação de Biden e sua aparente caducidade que provoca uma certa indulgência. Votar nele passou a ser um detalhe, assumiu traços do “se só tem tu, vai tu mesmo”na visão de alguns. No tabuleiro global, já marcado por transformações espantosas na Europa, com a ascensão da ultradireita e a hegemonia de ditadores na Rússia, China e inúmeras outras nações, a simples possibilidade dos EUA em mãos erradas pode ser a pá de cal para uma instabilidade política com resultados dantescos. Faltam, no momento, lideranças globais relevantes. Rarefeitas, deixam o debate internacional frágil, estéril e rumo a desfechos equivocados (para dizer o mínimo). O futuro é incerto e nada animador. Trump não reúne as mínimas condições de assumir a missão para a qual se habilita e, ainda assim, está na dianteira, com o beneplácito de autoridades locais, para chegar ao pináculo da força absoluta. Nem as condenações e processos que carrega contam. Ele, que já é o primeiro ex-presidente norte-americano condenado criminalmente, também está quebrando outros paradigmas complicados como o da consagração das fake news como método de governo. Se nos EUA elas prevalecerem, essa ferramenta damentira vai mesmo controlar o mundo.