Castigo às vítimas

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Rachel Sheherazade: "Em nenhum dos casos a lei estipula prazos ou procedimentos específicos para que o abortamento seja realizado. Mas, o projeto 1904/2024 impõe a 22ª semana de gravidez como prazo máximo para a pratica do aborto legal" (Crédito: Divulgação)

Por Rachel Sheherazade

Seguirá para votação sem debates, sem apresentação de análises, pareceres, evidências científicas ou jurídicas, o projeto de lei 1904/2024, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), que, na prática, equipara o aborto ao crime de homicídio.

A tramitação em regime de urgência foi aprovada por 32 parlamentares, em sua maioria homens, e isso significa que o PL não passará por comissões temáticas da Câmara, onde os assuntos em pauta costumam ser debatidos com participação da sociedade civil e amadurecidos até chegarem a votações conclusivas.

A pressa na votação denota o caráter impositivo dos defensores da criminalização do aborto, inclusive do aborto considerado legal, mas também tem como pano de fundo o jogo de interesses em torno da reeleição do atual presidente da Casa, Artur Lira.

O projeto deixou estarrecidos os movimentos de defesa dos direitos humanos e reprodutivos, pois enquanto outros países avançam para assegurar mais garantias à saúde da mulher, com ampliação do acesso ao abortamento seguro, o Brasil segue na direção oposta, colocando em risco direitos duramente conquistados ao longo de décadas de luta.

Atualmente, a lei brasileira autoriza a interrupção da gravidez em três hipóteses: quando representa risco de vida à mulher, quando o feto for anencéfalo e quando a gestação é consequência de estupro.

Em nenhum dos casos a lei estipula prazos ou procedimentos específicos para que o abortamento seja realizado. Mas, o projeto 1904/2024 impõe a 22ª semana de gravidez como prazo máximo para a pratica do aborto legal. Após esse período, a interrupção da gestação é considerada crime equiparado ao homicídio, mesmo quando a gravidez seja fruto de um estupro.

Ou seja, uma mulher adulta estuprada que aborte o feto após a 22a semana de gestação poderá ser condenada a castigo superior ao do seu algoz, tendo em vista que a pena para estupro pode ir de 6 a 10 anos de prisão.

Caso aprovada, a lei será particularmente cruel com mulheres pobres e periféricas e meninas de 10 a 14 anos.

A pobreza dificulta e muitas vezes inviabiliza o acesso à rede púbica de saúde — deficitária e letárgica, um obstáculo quase intransponível para quem não tem condições financeiras sequer de se transportar de um ponto a outro.

Enquanto isso, meninas de 10 a 14 anos geralmente nem sabem que estão grávidas (muitas sequer passaram pela primeira menstruação) e quando a gestação é descoberta já está avançada. Sem falar que na maior parte dos casos os pais preferem esconder a gravidez, fruto de estupro dentro da própria família.

Se tal lei entrasse em vigor, obrigaria mulheres e meninas a gestarem o fruto de um estuprador. Um castigo perverso para a vítima, uma punição a mais de um congresso machista e majoritariamente masculino, que simplesmente não sabe o que é gerar, parir nem ser mulher.