Biden vacila, dá sinais de incapacidade, e põe os democratas numa sinuca; entenda
Por Eduardo Marini e Denise Mirás
RESUMO
• Desempenho sofrível de Joe Biden no primeiro debate com Donald Trump deixa democratas em pânico
• Situação abre caminho para retorno do extremismo retrógrado personificado no republicano
• Presidente afirma que não larga disputa
• Retirá-lo da chapa pode significar desmoralização da campanha
• Mantê-lo na disputa pode levar a uma vitória fácil do rival
• Uma coisa é certa: qualquer saída será dramática
O Partido Democrata — e a democracia americana — estão na encruzilhada. Inexplicável, desastroso, tenebroso, trágico, decepcionante, um fracasso, hesitante e sem foco foram apenas algumas das palavras e expressões usadas por analistas e veículos de todo o mundo para bombardear a participação do candidato da legenda à reeleição, Joe Biden, 81 anos, no primeiro debate com o republicano Donald Trump, 78. E também para escorar a opinião de que o atual presidente deve jogar a toalha na disputa. A devastação política provocada pelo desempenho, classificado de “horrível” pelo jornal mais influente do mundo, o The New York Times, encurralou os democratas numa sinuca de bico.
• Um caminho é encarar o desgaste e a possível desmoralização com a troca ou desistência de Biden.
• Outro é mantê-lo sob risco de enterrar de vez a campanha e os seis meses restantes de mandato, além de abrir caminho para a volta do extremismo retrógrado da extrema-direita, personificado em Trump. E agora, Joe?
Há ao menos um ponto em comum nas duas opções: ambas são dramáticas. Aos democratas, a pouco mais de um mês da convenção nacional, marcada para 19 a 22 de agosto, e a menos de quatro da eleição de 5 de novembro, resta optar entre a picada do inseto e o mal do inseticida.
“Ninguém vai me tirar”, bradou o presidente na quarta- feira (3). Incrédulos e “em profundo, amplo e agressivo pânico”, na definição de John King, uma das estrelas da CNN, organizadora do debate fatídico, os caciques do partido se convenceram, ao menos de início, de que Biden só deve ser substituído se pedir para sair.
Seria o mal menor. Fizeram a defesa pública da manutenção da candidatura, mas, nos bastidores, com pesquisas que mostram adesão de 70% a 75% dos americanos à substituição no colo, travam discussões tensas sobre quem poderia ser o candidato em caso de recuo do presidente (leia quadro com os principais nomes).
“Não sei o que esse senhor disse… e acho que ele também não sabe.”
Donald Trump no debate, após frase sem sentido de Biden sobre imigração
A defesa dos aliados, ensaiada mas constrangida, sofreu ataques, abalos e fogo amigo durante toda a semana que passou.
• O deputado democrata Lloyd Doggett, do Texas, foi o primeiro nomão do partido a defender publicamente a troca de candidato. “Represento o coração de um distrito já representado por (ex-presidente) Lyndon Johnson. Sob circunstâncias distintas, ele tomou a dolorosa decisão de se retirar. Biden deveria fazer o mesmo. Respeitosamente, apelo para que desista”.
• Em seguida, Julian Castro, ex-secretário no governo de Barack Obama, disse crer “que outro democrata teria mais chances”.
• Tim Ruan, deputado democrata por Ohio, sugeriu que a vice Kamala Harris, 59 anos, ocupasse o lugar do presidente na disputa.
• A influente Nancy Pelosi, deputada pela Califórnia e ex-presidente da Câmara, optou pela defesa no início, mas depois escalou o muro. “Acho questão legítima especular sobre isso (as condições mentais de Biden) como episódio ou condição. Caberá a ele fazer o que ele pensa.”
A opinião de Nancy tem peso porque, além de respeitada internamente, tem fama de avião supersônico na tarefa de arrecadar fundos para o partido.
A pressão na imprensa foi infinitamente maior.
“Comecei a montar uma lista de vozes proeminentes pedindo a Biden para passar o bastão, mas desisti: era difícil acompanhar o dilúvio”, resumiu o comentarista Steve Benen, do canal de notícias MSNBC.
Houve espaço até para piadas. O comediante, ator, escritor e produtor Jon Stewart não teve pena no presidente em um dos sucessos da tevê americana, o programa The Daily Show. “O desempenho no debate fez os democratas desejarem pular das janelas”, espetou.
Acuado pelo bombardeio de todos os lados, Biden piscou.
Na quarta (3), o The New York Times revelou que ele disse a um “aliado importante” saber da possibilidade de “não conseguir salvar a candidatura se não convencer o público, nos próximos dias, de que está apto ao cargo”. No mesmo dia, Biden contra- atacou: “Ninguém vai me tirar”.
Na cúpula democrata há a seguinte visão: ele desistiria apenas se for aconselhado a isso por familiares, sobretudo o triunvirato formado pela mulher, Jill, a irmã três anos mais nova e conselheira política Valerie e o filho Hunter.
Reunidos em casa, os Biden incentivaram o presidente a continuar. Jill ilustra a capa da mais recente edição americana da Vogue. Questionada pela revista, exibiu firmeza. “A família não deixará que os 90 minutos (do debate) definam quatro anos de presidência. Continuaremos a lutar. Ele sempre fará o melhor para o país.”
Em meio ao turbilhão, a imagem da primeira-dama reluzente na primeira página da publicação, empacotada num Ralph Lauren branco de corte impecável e enfeitada com brincos azul-turquesa de Irene Neuwirth, foi vista como um misto de ironia e sátira por analistas e eleitores. “Que momento”, ironizou o jornal The Washington Post.
Kamala Harris era o único nome atrás de Biden no mercado de apostas.
• Estava com 4,3% das preferências, bem atrás dos 35,5% do presidente.
• Pois até isso foi mudado pelo debate. Na quinta-feira (4), ela apareceu com 17,5% enquanto o presidente escorregava ladeira abaixo rumo aos 9,7%.
• Trump continua a passear folgado na frente, com 56,2%.
• No entanto, uma pesquisa nacional, feita pelo Siena College para o The New York Times, retirada do forno na terça-feira (2), mostra o republicano seis pontos percentuais à frente, com 49%, contra 43% de Biden.
• Três em cada quatro eleitores (74%) consideram o democrata idoso demais para outro mandato, atesta o mesmo levantamento.
Kamala sobe
A vantagem atual de Trump, garantem os técnicos da pesquisa, é semelhante à nacional na maioria dos swing states, estados que se alternam entre um e outro lado e acabam por decidir a parada.
• No sistema americano, quem conquista mais votos em um estado leva todos os seus delegados.
• O candidato que soma o maior número de representantes no geral leva a presidência.
• Por isso, um concorrente pode perder mesmo sendo mais votado, como ocorreu em 2016 com Hillary Clinton, que somou quase três milhões de votos à frente do eleito Trump.
Na quarta (3), a agência de notícias Reuters, após consultar sete fontes graduadas da campanha democrata, apontou Kamala como alternativa preferida pelos generais da legenda para substituir Biden. Se isso ocorrer, ela assumirá o controle do dinheiro e da estrutura de campanha. A Casa Branca negou a escolha dos caciques.
Desafios acompanham Biden desde cedo. Na infância e adolescência, era gago ao extremo e sofria de fobia social. Problemas superados, tornou-se importante político de carreira. Os fantasmas sobre limitações pessoais estão de volta. Analistas levantam a possibilidade de ele viver um processo de desequilíbrio psicológico e até demência.
O Wall Street Journal foi além. Apoiado em entrevistas com 45 pessoas próximas, concluiu que ele “mostrou sinais de declínio mental” no debate. Democratas ouvidos declararam que “as faculdades mentais de Joe parecem ter diminuído”.
Robert Hur, advogado especial de Biden, o descreve como “um homem idoso de memória fraca”. De novo, a Casa Branca entrou em campo. Rotulou as informações do jornal de “falsas alegações”.
Sem dó nem piedade
Trump despejou pelo menos 28 afirmações falsas no debate. Chegou a apresentar programas de Biden como seus, e o pior: sem ser desmentido pelo autor das realizações. Experiente diante das câmeras, não teve dó nem piedade do oponente. Após uma frase absolutamente sem sentido do democrata sobre imigração, franziu a testa, apertou os olhos, fez o biquinho habitual e mandou ver: “Não sei o que ele disse… e acho que ele também não sabe”.
Jornalistas do The New York Times reuniram episódios, ocorridos nas semanas e meses anteriores ao debate, de um Biden “confuso e apático, que perdia o fio da meada nas conversas”. Os lapsos de memória, disseram as fontes, “pareciam mais frequentes, pronunciados e preocupantes”. Após uma série de viagens internas e internacionais no período, a trabalho ou em campanha, o presidente culpou o cansaço pelo desempenho desastroso. “Não fui inteligente”, penitenciou-se. “Viajei ao redor do mundo algumas vezes, ignorei os alerta da equipe e adormeci no palco”, admitiu.
“Substituir a essa altura seria fraqueza. Os democratas caíram em armadinhas, mas Biden continua a ser a alternativa”, constata Rodrigo Amaral, professor de Relações Internacionais da PUC-SP. “O partido precisa ser mais incisivo. Mostrar uma candidatura que preserva a democracia, melhorou a economia e saiu da pandemia com menos desemprego, ganhos que o partido ainda não transforma em moe-da política.”
Roberto Goulart Menezes, professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB, diz que os democratas devem seguir unidos em torno do presidente. “Trocar seria começar do zero. Nesse momento de força da extrema-direita, é difícil uma mulher negra ou alguém latino conquistar votos suficientes para derrotar Trump. O partido ganharia se o apresentasse como um candidato que segue, como um gesto de coragem, que pensa na nação e não apenas no partido, para ganhar a eleição e salvar a democracia, mesmo que necessite ser substituído depois.”
Caso os democratas não superem esses desafios, o mundo voltará a ser constrangido pelo radicalismo de Trump. O republicano certamente vai reforçar o governo israelense, que ataca civis sem pena na Palestina, restabelecer laços firmes com o russo Vladimir Putin, apoiar o extremismo emergente na Europa e turbinar radicais inconsequentes e delirantes na América Latina, como Jair Bolsonaro e o presidente da Argentina, Javier Milei. É bom torcer para que Biden e os democratas escolham o caminho certo na encruzilhada e saiam sem grandes ferimentos da sinuca de bico.
Um outro “presente” para Trump
Suprema Corte concede imunidade limitada ao republicano nas acusações que os juízes considerarem atos oficiais
Donald Trump teve outro motivo para comemorar, na semana que passou, além do desempenho sofrível de Joe Biden no primeiro debate.
Por seis votos a três, a Suprema Corte decidiu que ele tem direito a imunidade presidencial limitada em ações criminais. Poderá reivindicar o benefício se o juiz de tribunais inferiores considerar o ato oficial, executado pelo presidente, e não pessoal, do cidadão.
“O presidente não está acima da lei nem usufrui de imunidade por seus atos não oficiais, mas nem tudo o que faz é oficial”, sintetizou o presidente da Corte, John Roberts. O tribunal analisou o tema após a defesa do republicano se manifestar no processo em que ele é acusado de atuar para alterar o resultado das eleições presidenciais de 2020 e incentivar a invasão do Capitólio em janeiro do ano seguinte.