Especial

O quase golpe na Bolívia: república do lítio cai no modo república das bananas

Com apoio popular, presidente neutraliza tentativa patética de um general de tomar o poder, mas ação expõe fragilidades e problemas históricos dos países da América do Sul, incluindo o Brasil

Crédito: Aizar Raldes

Manifestantes contrários à tentativa de golpe enfrentam militares no centro de La Paz, na Bolívia (Crédito: Aizar Raldes)

Por Eduardo Marini e Luiz Cesar Pimentel

O escritor e correspondente internacional norte-americano John Gunther, em um momento de inspirado refinamento, cunhou, em 1944, a seguinte frase: “A Bolívia não é um país; é um problema”. Referia-se a uma das poucas coisas estáveis no país vizinho: a instabilidade política, expressa na montanha-russa política que sacoleja os bolivianos entre golpes de estado, tentativas frustradas para derrubar governos e ações grotescas com o intuito de rasgar a constituição. Entre fracassos e golpes consolidados, os bolivianos enfrentaram nada menos do que 194 episódios do tipo desde a independência. O último deles, na quarta-feira (26), liderado pelo general Juan José Zúñiga, terminou em fracasso retumbante, com lances de legítima comédia pastelão.

Zúñiga dirigiu-se ao tradicional Palácio Quemado, na Praça Murillo, centro da capital La Paz, para destituir o presidente eleito, Luis Arce. Seus homens chegaram a arrombar um portão com uma pancada de blindado. O problema, para lembrar Gunther, é que Arce despacha no Grande Palácio do Povo, um prédio moderno em uma esquina do mesmo quarteirão.

Numa cena que correu o mundo, Arce caminhou até Quemados, encarou Zúñiga de olhos nos olhos e, com o apoio dos políticos, de parte das Forças Armadas e da sociedade, transformou a bagunçada ação em pó. Em seguida, voltou andando ao palácio novo e empossou uma nova cúpula militar.

“Ninguém pode tirar a democracia que conquistamos. Estamos seguros de que iremos seguir trabalhando”, afirmou, enquanto a tropa de Zúñiga deixava a praça. “Como amante da democracia, quero que ela prevaleça na América Latina. Golpe nunca deu certo”, resumiu o presidente Lula, que, no mesmo dia, convocou uma reunião com assessores internacionais para discutir a questão. A viagem de Lula à cidade boliviana de Santa Cruz de la Sierra, no próximo dia 9, está, a princípio, mantida.

Presidente Arce disse em discurso “estar seguro de que continuará trabalhando na democracia” (Crédito:Juan Karita)

Para além das trapalhadas, a ação na Bolívia revela um teor considerável de gravidade quando inserido no contexto das sucessivas crises políticas e sociais que aterrorizam a América do Sul.

Basta lembrar as recentes tentativas de golpe, agressões à democracia e ataques ao equilíbrio político levados a cabo no Peru, Chile, Venezuela, Colômbia, Argentina, Equador, Bolívia e na ação criminosa dos bolsonaristas no 8 de Janeiro, em Brasília.

Por sinal, parlamentares fiéis a Bolsonaro comemoraram a tentativa.

Governados por esquerda ou direita, países emergentes latino-americanos não conseguem acompanhar o ritmo dos concorrentes asiáticos e as chagas de sempre — atraso tecnológico, insuficiência de patentes, pobreza, desigualdade, desequilíbrio jurídico, escassez de produtos com valor agregado para exportação — continuam expostas em pleno século 21.

O Brasil ainda nutre o sonho de liderar a integração física desta parte da América, mas não consegue sequer manter o nível de influência na região exercido décadas atrás. Mesmo fracassada, a tentativa caricata de golpe na Bolívia expõe esses fatores e também a decepção dos latino-americanos com sistemas políticos, homens de governo e rumos de economias. Os níveis de pobreza assolando praticamente metade dos argentinos, a revolta dos chilenos com os resultados da previdência mal privatizada e a preocupação de brasileiros com a ameaça de aumento da inflação são exemplos do ambiente preocupante.

Golpistas foram atrás do presidente no palácio antigo, mas ele estava despachando na sede nova (Crédito:Gaston Brito Miserocchi)

Interesse no lítio

A patacoada golpista e a turbulência política na Bolívia possuem origem e interesse no lítio.

• O país tem a maior reserva mundial desse minério — estima-se que regiões ao sul boliviano concentrem 21 milhões de toneladas, sobretudo na área conhecida como Salar do Uyuni.

• O lítio é matéria-prima para baterias, especialmente as de carros elétricos.

• Como a indústria do setor cresceu espetacularmente nos últimos anos, o preço do produto em tonelada passou de US$ 5 mil (cerca de R$ 27 mil), em 2010, para US$ 80 mil (R$ 440 mil) em 2022, quando atingiu o pico.

• EUA e China, principais fabricantes de veículos com baterias de alto desempenho, travam uma guerra silenciosa pelo domínio da produção. O governo americano tenta controlar a produção de lítio no país para evitar a concorrência de China e Rússia na região.

O presidente Arce e o ex, Evo Morales, possuem a mesma posição em relação ao minério, que deve ser estatizado, o que incomoda militares, conservadores e neoliberais, todos defensores da privatização. Arce era amigo de Morales, que o apoiou. Romperam pela aproximação do mandatário de figuras da direita. Entre elas, Zúñiga.

“É preciso entender o país. Você tem polos econômicos como Santa Cruz de la Sierra, totalmente dominados pela direita neoliberal, mas o restante da Bolívia é majoritariamente progressista. Para ter governabilidade, Arce começou a trazer várias figuras da direita, incluindo esse general que promoveu o golpe teatral, é acusado de corrupção e teve inúmeros conflitos com Morales”, explica o doutor em Ciências Sociais Paulo Niccoli, professor da Casa do Saber. Ele entrevistou o ex-presidente Evo Morales em 2022 e lançou livro sobre o movimento que o tirou do poder três anos antes: O Golpe de 2019 na Bolívia: Imperialismo contra Evo Morales.

Manobra anacrônica

A idéia de Zúñiga, com a manobra desastrosa do tanque que rompeu o portão de Quemados, era sepultar de vez a possível candidatura de Morales nas eleições presidenciais de 2025, em detrimento da tentativa do atual presidente de se reeleger. A Suprema Corte local ainda não autorizou a tentativa do quinto mandato de Evo. Ele está em campanha pelo país para tentar mobilizar a população. O general, destituído do comando das Forças Armadas, entendia que Arce toparia um auto-golpe, com sua permanência no poder e cancelamento das próximas eleições.

Zúñiga, líder da ação, é preso. Afirmou que tentou o golpe a pedido do presidente. Não colou (Crédito:Ministry of Government of Bolivia)

“A manobra foi totalmente anacrônica”, resume Niccoli. “Com o fim da Guerra Fria e a estabilidade das democracias, iniciou-se a era dos chamados golpes suaves, sem uso de força militar. Os agentes utilizam outras estratégias, como controle do Judiciário, financiamento de narrativas em redes sociais, deturpação de candidatos por fake news, coisas que conhecemos bem no Brasil.”

O pesquisador cita, ainda, os casos dos Kirchner, na Argentina, de Michelle Bachelet, no Chile, todos patrocinados, segundo ele, por potências econômicas. “O roteiro é sempre o mesmo.”

O combustível da turbulenta política boliviana, o lítio, é atualmente estatizado e está sob controle dos chineses, que conduzem até mesmo o processamento, para que seja exportado dessa forma.

Nas disputas de bastidores entre China, Estados Unidos e Rússia, novos abalos sísmicos podem ser esperados para breve no país vizinho. Como visto na atabalhoada e equivocada invasão de Quemados, a Bolívia, e de resto a América do Sul, sequer ainda se desvencilhou da figura do caudilho. “É coisa típica de República de Bananas em países colonizados. Isso acontece em todos os lugares assim”, lembra Niccoli.

A Bolívia acumulou 18 presidentes entre 1978 e 2006.

Na média, um a cada ano e meio.
Entre 2001 e 2006, teve um por ano.
Dos 86 mandatários enfileirados da independência até agora, incluindo Arce, 32 foram ditadores militares.

No seu esperneio, pouco antes de ir para o xilindró, um isolado Zúñiga ainda ameaçou soltar dois adversários ferrenhos de Arce: a ex-presidente interina Jeanine Añez e o governador de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho. Mas o problema — para lembrar novamente a frase do correspondente internacional — é que os dois condenaram enfaticamente a tentativa de golpe.

“O mandato do voto popular deve ser respeitado. Qualquer ação contra ele é absolutamente ilegal e inconstitucional”, disparou Camacho.

O Ministério Público boliviano promete investigar e colocar na cadeia militares e civis participantes da ação. Não bastassem os militares trapalhões, Arce ainda precisa enfrentar, numa briga interna, o apetite interminável de Evo Morales, do mesmo partido, o Movimento ao Socialismo (MAS). Morales deseja recapturar a legenda para voltar ao poder nas eleições de 2025. Os anos e décadas passam, e Gunther tem cada vez mais razão.

Morales briga com Arce para ser o candidato do partido nas eleições presidenciais de 2025 (Crédito:Juan Karita)