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Entenda como 40g de maconha colocaram Supremo e Congresso em pé de guerra

Por 18 anos o porte de maconha sofreu preconceituoso julgamento. O STF determinou a descriminalização da posse de até 40 gramas para consumo pessoal. Foi a vez de o Congresso protestar, acusando interferência indevida no Legislativo. Enquanto a polêmica continua, o uso da quantidade determinada está liberado, apesar de ilícito

Crédito: Divulgação

Por Luiz Cesar Pimentel, Marcelo Moreira e Vasconcelo Quadros

No dia 11 de novembro de 2019, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, concedeu o habeas corpus 127.573 à mulher que fora “condenada à pena de 6 (seis) anos, 9 (nove) meses e 20 (vinte) dias de reclusão, a ser cumprida em regime inicialmente fechado, pela posse de 1g (um grama) de maconha”. Segundo ele, a punição feria os princípios da proporcionalidade, sendo a pena descabida, pois o delito era “insignificante e de ofensividade mínima”. O magistrado corrigia, assim, limbo em que o Poder Judiciário entrou em 2006, quando instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) sem diferenciar usuário de traficante.

Durante 18 anos, coube a policiais e juízes a diferenciação, e lambanças punitivistas como essa eram estabelecidas em instâncias inferiores e poucos casos tinham a sorte de subir para o Tribunal de Justiça ou STF. Até que a Suprema Corte corrigiu o defeito do sistema promovida por lei deficiente ao descriminalizar o porte de até 40 gramas de entorpecente ou seis plantas fêmeas da Cannabis Sativa para consumo pessoal, ratificando a decisão do próprio Congresso Nacional, que agora iniciou campanha oposta ­— entre os parlamentares, a decisão é vista como mais uma colisão entre Legislativo e Judiciário.

A verdade é que a decisão do Supremo é uma correção à lei estabelecida pela metade, já que promovia um convite ao arbítrio.

Como a distinção entre comerciante e usuário era decidida por policiais ou juízes, as punições eram determinadas pela mesma sorte.

 Com a definição de descriminalização até 40 gramas, o porte e consumo continua sendo ilícito, enquanto o tráfico segue criminoso, com pena de 5 a 20 anos de prisão.

Para o ato privativo do entorpecente, a punição acontece na esfera administrativa, com advertências e medidas educativas, e a Justiça garante tratamentos iguais a situações semelhantes. Considerando que um cigarro típico do entorpecente pode conter entre 0,5 e 1 grama, a dosagem estipulada é suficiente para 40 a 80 cigarros.

Não foi ágil a deliberação final da Suprema Corte — foram nove anos até o resultado desta semana. E criou uma sinuca de bico para o Congresso, onde tramita na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição 45, conhecida como PEC das Drogas, criada e aprovada no Senado no ano passado.

Esta prevê “como mandado de criminalização a posse e o porte de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, observada a distinção entre traficante e usuário”, em entendimento diametralmente oposto ao da maioria dos ministros do Supremo, enquanto altera o artigo quinto da Constituição. Só que após a merecida surra pública que levou ao promover a aprovação da urgência do Projeto de Lei Antiaborto, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), prefere qualquer coisa a enfrentar uma nova pauta de costumes.

E agora, Lira?

Mesmo assim, Lira, que ironicamente está em viagem a Portugal junto com o relator da descriminalização da maconha, Gilmar Mendes, determinou a criação de comissão especial para tratar da PEC, que depois de passar pelo Senado, foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara.

Pelo trâmite, os partidos deverão indicar representantes para o colegiado, que terá 34 componentes. O assunto dificilmente será tratado até as eleições municipais de outubro na casa, mas Lira terá que fazer algo para agradar a grande bancada conservadora, já que depende dela para fazer seu sucessor na eleição à presidência da Câmara, que acontece em fevereiro de 2025.

A comissão possui o prazo regimental mínimo de dez sessões para debater a PEC das Drogas, antes de o tema ser pautado em plenário. O relator na Câmara, o deputado Ricardo Salles (PL-SP), ex-ministro do Meio Ambiente de Jair Bolsonaro, criticou o voto do STF. “Esta decisão invade o mérito do Congresso.”

• O parlamentar tem certa razão na reclamação, pois pelo princípio da separação de Poderes, a decisão do Supremo não vincula o Poder Legislativo, possibilitando aos parlamentares a aprovação de legislação contrária à que foi decidida na Corte.

• Mas, por outro lado, há o entendimento de que o Supremo limitou-se a corrigir falha de legislação e não elaborá-la, o que foi feito na própria Câmara em 2006. Teria invadido a seara parlamentar se houvesse legalizado a droga, que significa aprovação de lei que regulamenta e permite uma conduta, o que não aconteceu.

Na prática, teses de repercussão geral, como a da semana, tornam-se disponíveis para aplicação quase imediatamente, a partir da publicação da ata de julgamento. Enquanto a proposta de emenda à Constituição pode continuar em discussão parlamentar.

No Senado, o presidente Rodrigo Pacheco (PSD-MG) criticou a decisão do STF. Ele repetiu quase ipsis litteris Salles com o argumento de “invasão à competência do Legislativo”. “Eu discordo do Supremo Tribunal Federal. Há uma lógica jurídica, política, racional em relação a isso, que, na minha opinião, não pode ser quebrada por uma decisão judicial que destaque uma determinada substância entorpecente, invadindo a competência técnica, que é própria da Anvisa, e invadindo a competência legislativa, que é própria do Congresso Nacional”, disse.

O presidente do STF, Luis Roberto Barroso, profere voto favorável à descriminalização. A decisão foi estabelecida por um voto, em 6 a 5 (Crédito: Andressa Anholete/STF)

Depois de proclamar a decisão na quarta-feira, 26, Barroso explicou que a decisão não foi tomada para contrariar o legislativo.

“Quem recebe os habeas corpus que envolvem as pessoas presas com droga é o STF. Portanto, nós precisamos ter um critério que oriente a nós mesmos em que situação se deve considerar tráfico e em que situação se deve considerar uso”.
Presidente do STF, Luis Roberto Barroso

Em clara referência ao descontentamento manifestado por Pacheco, sentenciou: “Não existe matéria mais pertinente à atuação do Supremo do que essa, porque cabe à Corte manter ou não uma pessoa presa, como cabe aos juízes de primeiro grau. Essa é tipicamente uma matéria para o Poder Judiciário”, sentenciou.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva acompanhou o raciocínio de Pacheco. “Se um dia um ministro da Suprema Corte pedisse um conselho, eu diria: ‘Recuse essas propostas. O STF não tem que se meter em tudo, ele precisa pegar as coisas mais sérias sobre o que diz respeito à Constituição, e virar senhor da situação, mas não pode pegar qualquer coisa e ficar discutindo, porque aí começa criar uma rivalidade que não é boa nem para democracia, nem para a Corte, nem para o Congresso Nacional”, disse. “Acho que é nobre que haja diferenciação entre o consumidor, o usuário e o traficante. É necessário que a gente tenha uma decisão sobre, não na Suprema Corte, pode ser no Congresso Nacional, para que a gente possa regular”, completou.

Alívio nas cadeias

A aplicação da determinação terá consequência no sistema prisional brasileiro.
Em uma conta modesta, já que o parâmetro definido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) é anterior à decisão do STF e estipulou limite de 25 gramas de porte, encontrou 42.631 encarcerados nessa condição entre os 852 mil presos no País (650 mil em regime fechado e 200 mil em prisão domiciliar).
A liberação pouparia cerca de R$ 1,3 bilhão aos cofres públicos, segundo dados da pesquisa Atlas da Violência 2024, elaborada pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Atualmente, 200 mil cumprem pena por tráfico de drogas.

O contingente fora das cadeias e a economia seriam ainda maiores se o limite fosse de 100 gramas. “Estimamos que o custo do encarceramento de pessoas que poderiam ser presumidas como usuárias de drogas ultrapassa a marca de R$ 2 bilhões a cada ano para o Estado, considerando-se a combinação de critérios objetivos do cenário B (100g de cannabis e 15g de cocaína)”, diz o texto do relatório.

O estudo indica que os recursos hoje canalizados para a segurança pública seriam mais bem aplicados nas áreas da educação e saúde, com programas de prevenção. “São recursos desperdiçados, que poderiam ter uma destinação muito mais nobre e eficaz para melhorar as condições de segurança, como o investimento na primeira infância e ensino fundamental para populações vulneráveis socialmente, o que poderia acarretar, inclusive, uma diminuição nas mortes por overdose de drogas.”

De acordo com especialistas, a resolução do STF deverá ter impacto significativo nos procedimentos judiciais a partir de agora, com efeito direto no encarceramento de pessoas detidas ou condenadas por porte de pequenas porções de drogas, principalmente a maconha.

“O Supremo Tribunal Federal entendeu que permanecerá como uma infração administrativa o porte e posse para consumo próprio de droga. Então é possível a aplicação de sanções de natureza administrativa, não mais penais”, diz Carlos Wehrs, professor de Direito da FGV Rio. Para ele, a decisão teve a intenção de atacar uma situação de injustiça que ocorre na hora das prisões, que quase sempre marginalizam negros e pessoas pobres de periferia. “Essa é uma das fundamentações utilizadas pelos ministros e, portanto, seria necessário a criação de um patamar mínimo de droga para que se houvesse uma presunção relativa.” Segundo o Conselho Nacional de Justiça, há pelo menos 6.345 processos suspensos aguardando desfecho do caso.

Pomo do preconceito

Dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) reforçam essa tese: negros são mais alvos de prisões por tráfico de drogas em caso flagrantes feitos a partir de rondas policiais. Em nota técnica de outubro do ano passado, a entidade analisou o perfil racial de réus processados por tráfico de drogas nos tribunais estaduais de Justiça comum. Foi considerada uma amostra de 5.121 acusados, de um total de 41.100 ações. São processos cujas sentenças são do primeiro semestre de 2019.
Entre os processados, a maioria é formada por jovens (72% até 30 anos),
do sexo masculino (86%),
de baixa escolaridade (67% não concluiu o ciclo de educação básica),
e de baixa renda.

Jovens negros com menos de 30 anos correspondem à metade dos réus — indicativo de “como a criminalização por tráfico recai” sobre essa parcela da população, segundo o estudo.

Do total de acusados, 46,2% são negros e 21,2% brancos.

“É possível afirmar que os crimes da Lei de Drogas, de 2006, são responsáveis pelo processamento e encarceramento, majoritariamente, de pessoas negras”, aponta a pesquisa. Se considerar os presos em flagrante, a partir do patrulhamento feito pela polícia — abordagem com base em comportamento suspeito — 51,3% são negros e 20,3% brancos. No caso de prisões em flagrante em vias públicas, 52,8% são de negros e 20% de brancos. “O que sugere que pessoas negras têm maior probabilidade de serem abordadas em policiamento ostensivo na rua do que pessoas brancas”, diz a nota.

Segundo a ONU, a maconha é a droga mais usada no mundo.
A Europa é o maior mercado de cannabis, já que 23 países descriminalizaram o uso tanto medicinal quanto recreativo.
No continente, é consumida por 8% da população.
O mercado global da erva é estimado em US$ 61 bilhões (cerca de R$ 330 bilhões), e as projeções indicam que deve duplicar até 2028.
O Brasil, como teve descriminalização do porte e não da droga em si, não sofrerá impacto na economia, mas pode vislumbrar os efeitos que a decisão promoveu onde ocorreu.

Jovens participam da tradicional Marcha da Maconha, em São Paulo; segundo pesquisa do PoderData, de março, 50% dos brasileiros são a favor e 45% contrários à descriminalização (Crédito:Cris Faga)

Pelo mundo

Em Portugal, onde o porte de até 25 gramas não é mais crime desde 2001, o Serviço Nacional de Saúde apontou redução na prevalência do consumo de drogas ao longo da vida e maior percepção sobre os riscos da maconha. Entretanto, a média de uso é superior à europeia: 9% contra 8%, respectivamente.

Já no Uruguai, onde toda a cadeia canábica foi legalizada em 2015, o consumo de maconha a partir do tráfico despencou de 58% para 11%. Mas, da mesma forma que entre os portugueses, 14,6% dos uruguaios são usuários, em curva de crescimento desde 2011.

O Canadá, que liberou uso recreativo em 2018, emitiu relatório em 2022 apontando queda no consumo entre adolescentes.

Há outros exemplos na América do Sul, como na Argentina, onde a cannabis medicinal é legal nas províncias de Chubut e Santa Fé desde 2016. No Chile, o cultivo para fins medicinais é autorizado há 10 anos, assim como na Colômbia desde 2015. O Equador permite posse para consumo pessoal de até 10 gramas.

Nos EUA, 23 dos 50 estados, além de Washington D.C., permitem uso recreativo e medicinal, enquanto a maioria permite a forma terapêutica. Como tudo vira fonte de receita por lá, o mercado legal de cannabis foi avaliado no ano passado entre US$ 27 bilhões e US$ 30 bilhões (R$ 150 a R$ 165 bilhões).

A estimativa de crescimento projeta cerca de 50% até o final de 2025.