“A vida como ela é”

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Luiz Cesar Pimentel: "A cada segundo nasce um youtuber da desinformação, que monetiza o canal à base da saliva rábica fascistóide com noticiário obscuro baseado em evidências anedóticas" (Crédito: Divulgação)

Por Luiz Cesar Pimentel

Há alguns anos, titubeio, quando não gaguejo, à mais ordinária das perguntas: “O que você faz da vida?”. A resposta verdadeira – “Sou jornalista” – sempre é vacilante e acompanhada de análise da reação facial do interlocutor. Se me olhar com comiseração, como se fosse o soldado japonês que está há 30 anos na selva e para quem não avisaram que a guerra acabou, faço piada autodepreciativa para cortar o climão. Isso acontece cada vez com maior frequência. Mas não deveria ser assim.

Sei que os números estão todos contra minha escolha profissional, mas o propagado (se não, celebrado) fim do jornalismo é quase tão nocivo quanto as mudanças climáticas. Minto. Arrisco dizer que muitas vezes é ainda mais nocivo.

Falo (escrevo) com propriedade por motivos de: 1. ser jornalista; 2. ter sido formado cidadão e profissional em época de ouro dos veículos de informação. Tudo o que escrevi até aqui me ocorreu ao ler uma notícia de rodapé de página no jornal em papel que assino (faço questão de contar para que saiba meu nível de comprometimento com a causa). Sem mais tergiversar, a informação veio da entidade de vigilância de mídia norte-americana Newsguard, que constatou que no corrente junho “o número de veículos de comunicação projetados para parecerem imparciais ultrapassou oficialmente o número de jornais reais nos EUA”. Resumindo: a mídia especializada em fake news superou a decente por lá.

Para contexto local, os veículos infecciosos norte-americanos, que publicam mentiras de interesse político, econômico, social, costumam se disfarçar de jornais regionais para publicarem notícias falsas e fomentarem a “legitimação impressa” de mentiras como alimento da polarização das redes. São chamadas de jornalismo pink slime (gosma rosa, em referência à carne ultraprocessada enlatada rósea e insalubre).

Aqui, o método e os meios são outros, mas o objetivo e resultados são, infelizmente, os mesmos. A cada segundo nasce um youtuber da desinformação, que monetiza o canal à base da saliva rábica fascistóide com noticiário obscuro baseado em evidências anedóticas.

Se a estimativa aponta que dos anos 1990 para cá, o número de jornais no País caiu de estimados 500 para menos de 200, não é necessária habilidade estatística para constatar que as “terças livres” e revistas de ponto cardeais da vida (não os cito nominalmente porque amam um processo), como nos EUA, superam de longe a oferta de veículos de informação séria e saudável.

Aprendi na vida que a verdadeira cidadania só é adquirida e praticada por pessoas bem informadas. Mas entrego à pensadora política Hannah Arendt o resumo do que quis dizer: “O objeto ideal do governo totalitário não são os nazistas ou os comunistas convictos, mas as pessoas para quem a distinção entre fato e ficção, verdadeiro e falso, não existe mais”.