Será este o pior Congresso da história do País? Fatos e analistas expõem o tamanho da encrenca
Por Vasconcelo Quadros
RESUMO
• Parlamentares radicais, desinformados, violentos e negacionistas formam maioria na Câmara e no Senado
• Estão reunidos nas bancadas fisiológicas do Congresso – boi, bala e bíblia, BBB –, e usam seu poder para chantagear o Executivo
• É a mais trágica legislatura da história do País, marcada pelo extremismo fundamentalista
• População jamais esteve tão desrespeitada e abandonada
Não foi a primeira nem a última, mas certamente a fotografia mais fiel do Poder Legislativo emergida da era fascista de Jair Bolsonaro é a chocante encenação feita, na segunda-feira (17), pela atriz e contadora de histórias Neydja Gennaro, funcionária do Senado, incorporando um feto recebendo uma injeção fatal em um aborto. Os uivos, berros e trejeitos mímicos do fictício embrião não prenderam apenas a atenção dos deputados e senadores sentados em volta do improvisado teatro em que se transformou o plenário de tapete azul do Senado Federal. Poucos metros acima, na galeria, 25 alunos do 5º ano do Centro do Ensino Fundamental 01, do Varjão, cidade-satélite do Lago Norte, que abriga uma das camadas mais pobres de Brasília, presentes a convite do autor do requerimento da sessão temática, o senador bolsonarista Eduardo Girão (Novo-CE) assistiu, sem aviso prévio, a um teatro patético, constrangedor e antipedagógico, oferecido levianamente a crianças daquela idade. Rápido e oportunista, Girão produziu a cena deprimente no embalo da repercussão do Projeto de Lei 1.904/24, do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), com assinatura de outros 32 parlamentares, que equipara o aborto com gestação acima de 22 semanas a homicídio simples e, entre outras propostas delirantes, defende a submissão de mulheres vítimas de estupro a penas de até 20 anos, maiores do que as dos estupradores.
Foi um espetáculo grotesco, raro de horrores e bizarrices. Deputados, senadores e convidados anti-aborto se alternavam na defesa da criminalização, usando, inclusive, bonecos e seringas, para causar impacto na simulação, como fez o deputado Dr. Zacharias Calil (União Brasil–GO).
Outro integrante do time, General Girão (PL-RN), de tão entusiasmado e atento à performance de Neydja, gravou no celular todo o espetáculo para abastecer suas redes sociais. A atriz atuou segura de que não será demitida, como garantiu Eduardo Girão. Foi o ponto mais alto – ou baixo, para fugir do duplo sentido – de um Congresso que se supera na tarefa de bater recordes de atos de retrocesso que jogam o País de volta às trevas.
Na quarta-feira (19), mais duas decisões bombásticas:
• a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou jogos de azar no País, com cassino e tudo,
• e a Câmara colocou em pauta a PEC da Anistia, o maior perdão da história às dívidas dos partidos, entre elas as pelo não cumprimento do regime de cotas a candidaturas de minorias.
Em lugar de pautas relevantes, entram preconceito, despreparo, violência, sabotagens ao Executivo e ao Judiciário e uma profusão de provocações insanas, que colocam o Congresso como gerador de tensões entre os poderes e de perplexidade na sociedade.
A campanha anti-aborto da extrema direita foi um tiro no pé e outro pela culatra. Na mesma segunda-feira, o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) condenou a iniciativa de Girão, que puxou para o Senado a crise produzida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), um The Flash na aprovação relâmpago, em escassos 23 segundos, do regime de urgência para o PL 1904, pela dramatização de um tema que merece ser discutido com serenidade.
Por uma dessas refinadas ironias do destino, a ex-mulher de Lira, Jullyene Lins, 48 anos, reviveu nesta semana a acusação de estupro e agressão física contra ele, em novembro de 2006, após saber que ela teria conhecido um homem. “Sua puta, sua rapariga, você quer me desmoralizar”, teria dito, segundo ela. “Me senti enojada, suja”, afirma Jullyene. O ministro do STF Alexandre de Moraes bloqueou a divulgação do material, mas voltou atrás na quarta-feira (19).
Pacheco chamou de “irracional” a iniciativa de Girão e avisou que o tema jamais será encaminhado a toque de caixa no Senado. “Quando se discute a possibilidade de equiparar o aborto, em qualquer momento, ao crime de homicídio, é uma irracionalidade. Não há o menor cabimento, a menor lógica, a menor razoabilidade”, disse.
Vários deputados de centro também reagiram, retirando a assinatura do projeto A pitada de bom senso foi forçada pela onda iniciada por movimentos de mulheres que encheram as ruas das principais capitais do País em manifestações para exigir direitos e, de quebra, a colocação na pauta o “Fora Lira”.
O presidente da Câmara recuou. É uma luz no fim do túnel.
O historiador e sociólogo Francisco Carlos Teixeira, professor de História Moderna da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) acha que o PT e o governo, inicialmente omissos, foram ultrapassados pelas mulheres com uma iniciativa que pode interromper a onda fascista. “A sociedade civil está derrubando o PL do estupro sem nenhuma atuação do governo, inclusive de ministras, que estão caladas. É pena, mas talvez seja um processo histórico inerente a essa fase de avanço da extrema direita, num governo que se contenta com a gestão do que ‘está aí’ e é superado pelos movimentos sociais”.
O deputado Gabriel Magno (PT), presidente da Comissão de Educação da Câmara Legislativa do Distrito Federal, pediu informações ao governo distrital. Indicou a realização de palestras às crianças testemunhas do “horroroso espetáculo” que, segundo afirma, deseduca, é antipedagógico, criminoso e desrespeita a política de educação sexual nas escolas. “É lamentável. Só reforça o projeto de pedófilos e estupradores”.
O extremismo não se restringe à pauta de costumes.
• Bizarra, mas pragmática, a direita radical sabe ser patrimonialista na apropriação de recursos públicos – são R$ 53 bilhões previstos no Orçamento deste ano para emendas parlamentares.
• E também recolocar como prioridade, na agenda legislativa, a prática do clientelismo comum na República velha, onde o governo do presidente Lula, sem votos para medir forças com o fascismo, tenta manter a governabilidade concedendo ministérios de porteira fechada e abrindo mão de montantes significativos, num toma lá dá cá que destoa das coalizões modernas.
“Deus, Pátria e Família”
Na troca de favores, os aliados do centro comandam onze ministérios. Mas, nos momentos decisivos, não controlam os votos que resultam em derrotas do governo.
• Pela coalizão, o governo deveria contar com pelo menos 262 votos na Câmara, mas os fiéis mal chegam a 130.
• O governo tornou-se refém da trindade formada ruralistas, policiais da bancada da bala e evangélicos hipócritas que se escudam no lema “Deus, Pátria e Família” para empurrar o Brasil de volta à Idade Média.
Nem a calamidade que castigou o Rio Grande do Sul foi suficiente para que a mais poderosa organização parlamentar, a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) retirasse da pauta o combo de 25 projetos de lei e três PECs que, reunidas no chamado pacote da destruição, vão fragilizar ainda mais o meio ambiente diante dos inevitáveis extremos climáticos.
Os três segmentos do atraso convergem em quase todas as pautas: do aborto, os evangélicos se juntam a ruralistas para derrubar licenciamento ambiental, flexibilizar a comercialização de agrotóxicos, facilitar a grilagem de terras e a mineração em áreas protegidas, e impor o marco temporal na demarcação de terras indígenas (leia quadro).
Eles atuam articulados também com a bancada da bala, que patrocinou o enfraquecimento da política de ressocialização prisional com a proibição da saidinha de presos e está num caminho tão ameaçador que mira o endurecimento de leis penais como atalho para chegar ao sonho de consumo: aprovar a pena de morte e a prisão perpétua.
Um grupo à margem de debates relevantes, num forte contraste com o de outros períodos, como o dos congressistas que tiraram o País da ditadura pelo Colégio Eleitoral, em 1985, e em 1988 elaboraram a Constituição Cidadã que tem garantido quatro décadas de democracia sem intervenção do militarismo golpista.
A marca do atual Congresso é o extremismo fundamentalista.
O presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro, preocupado com o retrocesso à pesquisa científica herdado de Bolsonaro, diz que o endosso do Congresso ao negacionismo é tão preocupante que um tema sério como a saúde da mulher foi tratado com “cena de circo”.
“O Legislativo está sem espaço para a ciência, tomado por gente sem o mais remoto interesse na verdade das coisas”
Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC
“É significativo ter na presidência da Comissão de Educação uma pessoa (o deputado Nikolas Ferreira, do PL mineiro) sem conhecimento nem proposta de ensino. Quando tudo vira lacre e manipulação, fica difícil”, resume.
Ribeiro está coberto de razão: a sociedade está diante de um legítimo circo dos horrores.