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Entenda a manobra que os radicais articulam para anistiar Bolsonaro

Extrema-direita tenta forçar Câmara a reabilitar Bolsonaro: articulação para acabar com a delação premiada, fuga de golpistas para a Argentina, sucessão no Congresso em 2025 e instabilidade política fazem parte do plano

Crédito: Mateus Bonomi

Bolsonaro conta com a movimentação dos aliados, como Mourão, para conseguir ser anistiado e disputar as eleições de 2026 (Crédito: Mateus Bonomi)

Por Vasconcelo Quadros

RESUMO

• Anistia a Bolsonaro é a grande pauta da extrema-direita até fevereiro do ano que vem
• Arthur Lira pode ajudar os bolsonaristas desde que eles apoiem seu candidato à sucessão na Câmara
• Lira já orientou a assessoria legislativa a desengavetar dois projetos que propõem o fim da delação a investigados ou réus presos
• Ao tentar limitar a delação a acusados em liberdade, a Câmara quer anular as revelações do tenente-coronel Mauro Cid para facilitar a vida de Bolsonaro
• PF e o Ministério Público perderiam a mais importante ferramenta legal regulamentada nos últimos 11 anos
• Isso implodiria o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.

O ex-presidente Jair Bolsonaro não está satisfeito em poder circular por aí livre e solto depois de ter tentado golpear a democracia. Ele quer bem mais e, sem o menor constrangimento, articula uma dupla anistia que o livre dos crimes praticados durante o mandato e limpe sua ficha para que possa concorrer em 2026. Com o apoio da extrema-direita reunida em torno do PL, o maior partido na Câmara, comanda a ofensiva que mira o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para assustar o Supremo Tribunal Federal (STF). Com o cerco da Polícia Federal e Ministério Público Federal se fechando, Bolsonaro, que há tempos abriu mão da defesa técnica para politizar seu caso, recorreu à sua tropa de choque no Congresso.

● Na semana passada coube ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), aliado dele nas eleições de 2022, a iniciativa de colocar na pauta a estranha proposta de revisão da colaboração premiada (lei 12.850/2013) para tentar anular a delação do tenente-coronel Mauro Cid, o ex-Ajudante de Ordens do Palácio do Planalto cuja confissão escancarou o plano de Bolsonaro para invalidar o resultado do segundo turno da eleição de 2022, com o uso inclusive das Forças Especiais do Exército para prender o ministro Alexandre de Moraes e dar um golpe de Estado.

● A mudança na delação está conectada a dois projetos que tramitam no Congresso, um do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) e outro sob a relatoria do deputado Rodrigo Valadares (União Brasil-SE), indicado pela presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, Caroline de Toni (PL-SC), que já assumiu o cargo no início de março com o compromisso de colocar na pauta a anistia dos presos pelo 8 de janeiro.

A finalidade, claro, é livrar seu “mito” dos mesmos crimes (abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado) atribuídos ao bando que vandalizou os prédios do STF, Palácio do Planalto e Congresso.

Lira pode ajudar os bolsonaristas desde que eles apoiem seu candidato à sucessão na Câmara (Crédito:Zeca Ribeiro)

O problema é que o passivo de Bolsonaro só aumenta.

• Uma investigação conjunta entre a PF e o FBI (a polícia federal dos Estados Unidos), descobriu que mais joias doadas ao Estado brasileiro pelo governo saudita foram retiradas do acervo público para, bem ao estilo do ex-presidente, fazer dinheiro vivo.

• O diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, afirmou que a descoberta reforça investigações e aprofunda o envolvimento de Bolsonaro, que será indiciado em mais um caso, pela reiterada prática de peculato, um crime punível com pena de 2 a 12 anos de detenção.

• As joias desapareceram, o que impediu que os investigadores esclarecessem se foram vendidas ou não. A nova acusação tem um ingrediente muito feio para o ex-presidente: elas foram levadas para Orlando no dia 30 de outubro de 2022 no avião presidencial, data em que Bolsonaro, a pretexto de não passar a faixa presidencial a Lula, fugiu do país para não ser preso pela tentativa de golpe, mas levando na bagagem um valioso butim para ser convertido em dólares, longe dos controles.

Os aliados de Bolsonaro querem enterrar a delação premiada do coronel Mauro Cid que incrimina o ex-presidente (Crédito:Lula Marques/ Agência Brasil)

Obsessão

Uma obsessão de Bolsonaro, a anistia, é a grande pauta da extrema-direita até fevereiro do ano que vem, quando o tema deverá entrar com força na campanha para sucessão de Lira e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD- MG). Com peso na disputa, parlamentares do PL prometem que levarão os votos do partido aos candidatos que se perfilarem ao lado de Bolsonaro no conflito com o STF.

Os bolsonaristas sondam os favoritos, ambos do União Brasil, Elmar Nascimento (BA) – o candidato de Lira para a Câmara –, e Davi Alcolumbre (PA) – apoiado por Pacheco para o Senado –, que até agora, pelo menos em público, não fizeram promessas. Um deputado do PL, que pediu anonimato, disse que a decisão do partido deve ser em bloco e por nomes que se comprometam em levar para a pauta do Senado o impeachment de um ministro do STF, preferencialmente Alexandre de Moraes, o “terror” de Bolsonaro.

Por orientação de Lira, a assessoria legislativa desengavetou dois projetos que propõem o fim da delação a investigados ou réus presos.
• O primeiro deles, de 2016, é do petista Wadih Damous, atual Secretário Nacional do Consumidor que, para tentar defender Lula das acusações que pipocavam na Lava Jato, resultado da delação do ex-presidente da OAS, Leo Pinheiro, preso em Curitiba à época, prevê a delação apenas para acusados em liberdade e responsabiliza criminalmente quem divulgar o conteúdo dos depoimentos. Levada ao pé da letra, a proposta vincula jornalistas e veículos de comunicação ao mesmo sigilo imposto a quem exerce cargo público.
 O segundo projeto é de um aliado do governo e de Lira, o deputado Luciano Amaral, do PV de Alagoas, partido que participa da federação com o PT e que tem proposta semelhante à de Damous. Caso vingue, a proposta mudaria radicalmente a lei das organizações criminosas, sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff em 2013 e que regulamentou a delação como a mais importante ferramenta legal para punir a roubalheira na política e no crime organizado.

Ao tentar limitar a delação a acusados em liberdade, a Câmara quer anular as revelações de Cid para facilitar a vida de Bolsonaro, mas também fere de morte casos de homicídio, como o que envolve Ronnie Lessa, o ex-militar e assassino confesso da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.

Pela delação dele soube-se que os suspeitos de encomendar o crime são os irmãos Brazão – o deputado Chiquinho Brazão, e o conselheiro do Tribunal de Contas, Domingos Brazão.

Impunidade

O procurador de Justiça de São Paulo, Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, disse à ISTOÉ que as duas propostas são discriminatórias, inconstitucionais, ferem a isonomia dos acusados e representam apenas uma tentativa de acomodação dos interesses dos grupos políticos que não querem os órgãos de controle combatendo os malfeitos.

“É mais um ato do negacionismo da corrupção com o objetivo de obstruir os caminhos processuais. Se o réu solto pode fazer acordo, por que o preso não pode? Ninguém será condenado apenas com base na delação. O projeto não tem coisa boa. Ele se soma a iniciativas que enfraqueceram as leis da improbidade, da ficha limpa e às ameaças contra o Ministério Público. Por esse caminho, o Brasil vai se consolidando como o país da impunidade. É mais um capítulo do show de horrores da corrupção.”

Livianu alerta que a proibição de divulgação do conteúdo das delações, com pena de detenção de 1 a 4 anos, é um grave atentado à liberdade de imprensa.

“Sem a possibilidade da delação, o Brasil vai se consolidando como o país da impunidade.”
Roberto Livianu, procurador de Justiça de São Paulo

A proposta de Damous serviu para proteger Lula no passado e agora pode ajudar Bolsonaro (Crédito:Tânia Rêgo)

O ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais) sustenta que essa pauta não é do governo, mas o próprio PT, que sofreu forte desgaste com as delações feitas no caso Petrobras, está dividido, embora também não tenha interesse em ajudar a anistiar os golpistas que tentaram a ruptura logo depois da vitória de Lula.

A pedido do Ministério da Justiça, a Polícia Federal está fazendo uma análise e entregará um parecer ao governo sobre os efeitos da delação nos últimos 11 anos. A anulação do instituto seria, segundo especialistas, uma medida corporativa de proteção para os próprios políticos caso o combate a corrupção, abandonado desde o governo de Michel Temer, ressurja em algum momento. Mesmo que fosse apenas para fazer ajustes à lei, uma eventual mudança como querem os deputados seria um retrocesso às investigações.

O instituto é uma prerrogativa do preso, mas também poder de polícia do Estado para esclarecer crimes. A Polícia Federal e o Ministério Público perderiam a mais importante ferramenta legal regulamentada nos últimos 11 anos. Os acordos de delação foram o coração da Operação Lava Jato, que acabou desmoralizada e teve seu fim decretado quando o ex-juiz e atual senador Sergio Moro (União Brasil-PR), depois de prender Lula, aliou-se a Bolsonaro tendo aceitado o cargo de ministro da Justiça. A motivação política, que ficou evidente com a entrada do então juiz no governo de extrema-direita, interrompeu o combate da corrupção.

O deputado Rodrigo Valadares deve ser o relator o projeto que prevê dar anistia aos condenados pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro (Crédito:Marcos Oliveira)

A busca da anistia motiva também a elevação da temperatura política no Congresso, o tom beligerante da extrema-direita e a reação em bloco de 163 réus condenados ou em fase de julgamento pelos atos do 8 de janeiro. Eles arrancaram as tornozeleiras eletrônicas impostas pelo ministro Alexandre de Moraes como medida cautelar na concessão de liberdade e se “asilaram” na Argentina alegando perseguição política no Brasil.

Pelo menos 65 deles já entraram com pedidos de refúgio, o que poderá levar o governo Javier Milei, de extrema-direita e um aliado de Bolsonaro no continente, a abrir um conflito diplomático com o Brasil, caso aceite a tese de que os foragidos são perseguidos políticos. O pedido feito ao Conselho Nacional de Refugiados (Conare) impede a repatriação imediata dos foragidos, já que a simples formalização do ato dá ao autor pelo menos três meses de status de refugiado, o que obrigará a Justiça dos dois países a esclarecer a situação legal de cada foragido.

A meta do bolsonarismo é criar mais um foro internacional de desgaste do STF e aproveitar o longo espaço de tempo entre as investigações e uma sentença definitiva do Supremo para reorganizar suas estratégias e focar suas ações no desgaste do judiciário e executivo no Congresso, com pautas-bomba como a da delação.

O movimento é estratégico, como ficou evidente na articulação de Hamilton Mourão, que, na terça-feira, 11, fez uma postagem no X (ex-Twitter), pedindo que o governo daquele país conceda refúgio.

O ex-vice-presidente afirmou que os condenados e investigados não confiam mais na Justiça, foram sentenciados a penas desproporcionais aos delitos e que o esforço do STF para prendê-los mostra “o viés autoritário e persecutório da esquerda no poder”. Mourão também coordena uma enquete online para avaliar o projeto de anistia, que sob a relatoria do senador Humberto Costa (PT-PE), tem chances mínimas de ser aprovada.

General do Exército, o senador representa a ala menos aloprada do bolsonarismo, mas demonstra reflexão convenientemente seletiva: ele ignora que foram seus colegas de farda, ex-comandantes militares, que detalharam em depoimentos o plano golpista posto em curso intensamente nos dois meses seguintes à eleição e que terminou nos ataques do 8 de janeiro.