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Aborto: saiba o que está em jogo na desumana proposta em curso na Câmara

Crédito: Zeca Ribeiro

O presidente da Câmara, Arthur Lira (centro), durante a sessão obscena (Crédito: Zeca Ribeiro)

Por Vasconcelo Quadros

A união das bancadas evangélica, da bala e do ruralismo está empurrando a Câmara dos Deputados para o fundo do poço da desumanidade com a aprovação de propostas que marcam um retrocesso histórico na vida do País. A mais grave delas é a que criminaliza o aborto e equipara a decisão da mulher em interromper a gravidez a partir da 22ª semana de gestação, mesmo em casos de estupro comprovado, a um homicídio simples, com uma pesada pena de até 20 anos de reclusão.

Nesta quarta-feira, 12, os deputados da direita ensandecida aprovaram em votação-relâmpago, que durou 23 segundos, o regime de urgência para projeto de autoria do deputado evangélico Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares bolsonaristas, sem passar pelas comissões, como é de praxe em qualquer matéria polêmica. Isso significa que a matéria está pronta para ser levada à votação no plenário da Câmara e, uma vez aprovada, só poderá ser mudada se for engavetada pelo Senado, uma hipótese improvável se for levado em conta que lá a superioridade conservadora também é forte.

A proposta, respaldada pela Frente Parlamentar Evangélica, é uma aberração legislativa e, se for vitoriosa no Congresso, criminalizará crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos que, em 60% dos casos, são as maiores vítimas de estupro.

“Criança não é mãe, e estuprador não é pai”, afirmou a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) ao se insurgir contra a proposta, apontando a flagrante contradição propositalmente ignorada pelos parlamentares religiosos.

Pior: caso a lei vingue, uma mulher estuprada que abortar pode ficar presa por 20 anos, enquanto o estuprador, pela lei em vigor, não ficaria mais de 10 anos detido.

Sâmia acrescenta que o foco dos deputados evangélicos são crianças e adolescentes que, pelo projeto, seriam “retiradas da condição de vítimas e colocadas no banco dos réus”.

Autor do projeto, Sóstenes Cavalcante é ligado ao pastor Silas Malafaia (Crédito:Marina Ramos)

Mesmo com todos esses requintes de perversidade, num rompante de irresponsabilidade e falta de civilidade, o coordenador da Frente Parlamentar Evangélica, Eli Borges (PL-TO), justificou o pedido de urgência e o voto favorável deturpando entendimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a evolução do feto durante a gestação.

“É assassinato de criança, literalmente, porque esse feto está em plenas condições de viver fora do útero da mãe.”

Borges ainda afirmou que a decisão da Câmara é uma resposta ao Supremo Tribunal Federal e ao ministro Alexandre de Moraes, que derrubou norma do Conselho Federal de Medicina proibindo a interrupção da gravidez por qualquer método. O ministro detalhou no despacho que a decisão era específica a gestações acima de 22 semanas em que a mulher tenha sido vítima de estupro.

Eli Borges é agropecuarista, pastor e também assina a proposta (Crédito:Zeca Ribeiro)

O dedo de Arthur Lira

A escabrosa proposta do bolsonarista Sóstenes Cavalcante, ligado ao pastor Silas Malafaia, porta-voz do ex-presidente Jair Bolsonaro na defesa dos golpistas, ganhou urgência na pauta com a concordância do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Para fazer média com os conservadores e garantir o apoio destes ao nome que indicará para sua sucessão, Lira colocou a matéria em discussão na reunião de líderes convocada por ele mesmo na quarta-feira. O presidente da Câmara ainda tentou se esquivar das críticas, afirmando que chegou a chamar o deputado Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) para a reunião, mas que este não compareceu.

•  O deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) esclareceu, no entanto, que tudo aconteceu a toque de caixa, sem aviso prévio, pegando de surpresa todos os parlamentares que se opõem à aberração. Ele contou que saiu rapidamente do plenário e que quando voltou foi informado “que um projeto foi deliberado em sua urgência sem que quase ninguém percebesse”.

•  Diante de confusão gerada por Lira, que misturou na mesma pauta a votação de urgência para o projeto que acaba com a delação premiada para réu preso sem fazer distinção, boa parte dos deputados não entendeu o que estava acontecendo. A deputada Talíria Petroni (PSOL-RJ) foi chamada para usar o tempo da bancada negra para falar na tribuna sobre a proposta e só então ficou sabendo que na verdade se tratava da urgência sobre o aborto. Sâmia Bomfim lembrou que nem o painel da Casa estampava as matérias, como é dever da Mesa registrar.

Bravatas

• O absurdo projeto prevê mudanças em quatro artigos do Código Penal equiparando, no geral, atos que atualmente não são crimes a um homicídio simples, com pena de seis a 20 anos de reclusão.

Os médicos, que até aqui eram isentos, também serão presos caso não demonstrem que o aborto esteja respaldado em decisão judicial e laudos comprovando que o feto é anencéfalo.

•  A lei permite atualmente a interrupção da gestação em casos de estupro, risco de vida à mulher, previstos no Código Penal de 1940, e anencefalia fetal, este último pacificado por decisão do Supremo Tribunal. Em nenhum dos casos há limite de tempo de gravidez, como agora querem os evangélicos, limitando tudo a um teto de 22 semanas de gravidez para qualquer procedimento. Bravateiro, Sóstenes Cavalcante ainda desafiou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a vetar a nova lei cuja aprovação conta como certa.

Tudo o que aconteceu na sessão da quarta-feira foi um teatro de absurdos, um misto de falta de insensibilidade com um tema tão caro para a mulher com a irresponsabilidade de uma direita que prevalece por ter a maioria dos votos para empurrar goela abaixo da sociedade pautas reacionárias e retrógradas, que jogam o País de volta ao período das trevas.

O endurecimento das leis com ampliação de penas — como também foi feito em casos de estelionato, um crime sem uso de ameaça ou violência, que tinha uma pena de um a quatro anos, e os reacionários tentaram aumentar para 19 —, o avanço sobre direitos adquiridos, liberação de agrotóxicos, agressão ao meio-ambiente e tantas outras anomalias, têm chamado a atenção do mundo pelo forte retrocesso que a direita irresponsável tenta passar.

Trata-se de uma ofensiva que junta num mesmo balaio a falta de preparo para legislar, o populismo e a especialidade da direita, que é produzir conteúdo para alimentar nas redes sociais o fundamentalismo fanático que gravita em torno de Bolsonaro.

Não há precedente tão ruim na história republicana que seja tão danoso quanto o acordo entre as correntes extremistas que dominam o Congresso.