Editorial

Governo nas cordas

Crédito: Mateus Bonomi/Agif/AFP

Carlos José Marques: "Esqueça a ideia de um presidencialismo tradicional, condutor e indutor do desenvolvimento. O clientelismo, o toma-lá, dá-cá, venceu, vigora e assume vantagens insuperáveis" (Crédito: Mateus Bonomi/Agif/AFP)

Por Carlos José Marques

Deprimente de ver, chocante para acreditar, mas o fato foi consagrado da maneira mais humilhante possível. O Brasil não tem mais um governo central gerido por um presidente eleito e com o controle da União para traçar políticas nacionais, direcionar prioridades orçamentárias e, assim, estabelecer seu estilo de gestão e política programática. Não, virou um mero amontoado de marionetes a serviço de atender a parlamentares sedentos por poder e verbas para os fins mais inomináveis possíveis.

Chamam a isso de um novo presidencialismo, mas o que efetivamente parece é um sequestro de atribuições que pelas urnas haviam sido dadas a um mandatário, hoje refém do Legislativo. A acachapante derrota dias atrás em um calhamaço de projetos de natureza Executiva – boa parte deles em sintonia com os interesses da população – dão conta da realidade vigente. A oposição, majoritariamente controlada por nuances de líderes bolsonaristas, fez a festa. Lambuzou-se em revisões e vetos de projetos oficiais para seu mais puro deleite. Na praça brasiliense, a noite fatídica em que uma série deles esteve em votação, invariavelmente com derrotas para o governo, foi comparada ao 7 a 1 do jogo do Brasil contra a Alemanha na Copa que enterrou as esperanças nacionais. Nem deu para respirar. As votações correram de lavada a cada série de congressistas que se manifestavam, expondo em definitivo os limites do Planalto daqui por diante. Esqueça a ideia de um presidencialismo tradicional, condutor e indutor do desenvolvimento. O clientelismo, o toma-lá, dá-cá, venceu, vigora e assume vantagens insuperáveis. É bem verdade que desde o resultado nas urnas, no apagar das luzes de 2022, essa realidade estava desenhada devido ao jogo de forças absolutamente desproporcionais que saiu dali entre as correntes em disputa. A direita extremista que apoiava e seguia o capitão Bolsonaro gabaritou em inúmeros estados, levou a peleja, apenas o líder deles não confirmou a esperada vitória. Bastou, de todo modo, o êxito da tropa. Fizeram uma espécie de pacto temporário pela governabilidade e passaram a colocar as garras de fora. Não existiam dúvidas de que a administração Lula dependia sofregamente da bancada conservadora. Apenas não havia ideia da dimensão dessa dependência e pode-se dizer, agora sem medo de errar, que ela é total. O Executivo está de joelhos, encenando controle do Estado sem realmente possuí-lo. Tudo terá de ser revisto e a articulação política rearrumada para um mínimo de controle operacional. Existe uma desconexão entre ministérios e aliados, e os representantes de Lula no Senado e na Câmara pouco conseguem fazer. As derrotas amargadas levaram o chefe da Nação a retomar pessoalmente reuniões periódicas com partidos para buscar entendimento. Já não era sem tempo. Uma reforma ministerial não está completamente descartada e parece inevitável após o day after da lavada nas plenárias.

Politicamente, o governo está quase sem defesa para resistir a pressões. Enquanto o Congresso parece ter perdido o contato com o Brasil e o que existe na vida real, o Executivo deixou de ter capacidade de reação. Lula virou pó diante da ocupação parlamentarista. Chegou-se a um novo patamar de controle da máquina. A base de apoio federal virou uma quimera. A paternidade da derrota, evidentemente, não se pode atribuir a uma única pessoa. Aliados apontam que o fracasso na batalha tem origem nas movimentações erráticas da equipe. Nesse diagnóstico saltam reclamações de falta de diálogo, de vocalização equivocada da pauta e de extrema dependência das decisões diretas do demiurgo de Garanhuns que não tem sido muito acessível ao balé de negociações. Ficou barata e fácil a traição. Deputados e senadores se acomodaram nos atrativos pecuniários e força da oposição. O Planalto se apega agora a uma agenda mínima de propostas econômicas e sociais, deixando de lado temáticas de costumes. De “fake news” à saidinha de presos, em nada disso os esforços oficiais têm logrado êxito. Como um divisor de águas, após a avalanche de resistências da semana passada, o governo caiu em si, sofreu um choque de realidade.

Deputados e senadores estão prestando contas a um eleitorado exponencialmente conservador, vocalizando inclinações até a ideias retrógradas, de retrocesso civilizatório. Na verdade, as siglas (quase todas) hoje convivem com um racha de posições, mas são controladas pelas facções bolsonaristas.

Grosso modo, esse bloco cinzento de parlamentares está ditando os rumos. Sem estratégia federal, o reacionarismo pontificou e está de posse do País, em um sistema que decerto aprisionou o presidencialismo. As motivações impróprias dessa galera avançam sobre um leque variado de temas que vão da proibição de recursos do Tesouro para abortos, para procedimentos de saúde na rede pública, até à transição de gênero, programas pedagógicos ou ocupação de terras — tudo que atente a tradições de pensamentos caquéticos. A extravagância implausível já consta atualmente da lei orçamentária. Efetivamente, o liberalismo está sob seu maior teste neste momento.

O autoritarismo vai aos poucos alcançando êxito na renhida querela com os liberais e as conquistas civilizatórias vêm sendo abandonadas. Picaretas estão tornando o cenário geopolítico insuportável, flertando com a consolidação de regimes de exceção. Nem escondem mais o intento. É o movimento inimigo número um da democracia e vai expondo a face de imoralidade escrachada dos donos do poder, enquanto o governo é rendido nas cordas.